Diário de Helena
Bellarrosa, Vale do Paraíba, 25 de novembro 1900.
Minha vida sempre foi cheia de altos e baixos, vivi
uma vida maravilhosa, conheci pessoas maravilhosas, amei, fui amada, chorei e
servi de consolo para que outros chorassem. A vida é assim! Sofri mais do que
carecia, amei mais do que precisava; mas sempre tive para comigo que tudo que
passamos é para um crescimento pessoal e espiritual. Fui uma mulher bastante à
frente de meu tempo. Meu pai me amava, minha mãe sofria por me ver feliz, não,
ela não me odiava. Mas era amarga consigo mesma, porque, odiava o fato de ter
deixado que outros mandassem em sua vida... já que, nunca teve coragem de ir
contra os dogmas e leis impostas pelos homens e pela igreja; onde a mulher
deveria obediência primeiramente a seus pais e depois a seu marido; na falta de
pai, quem possuía poder sobre si era seu irmão, varão, mais velho... Vida que
viveu infeliz.
E isso, ela, não aceitava,
pois, meu pai criou a mim e à minhas queridas irmãs com liberdade. Nunca nos
impôs nada, tanto é que minhas irmãs casaram por amor. Odiava a forma a que ele
conduziu a educação de suas filhas. Queria que ele nos tratasse a rédeas
curtas. A única coisa que ele não nos permitiu foi o estudo científico. Ele
dizia: “mulher precisa aprender a lidar com a casa, estudo é para homens. O
máximo que uma mulher pode aprender é a leitura, para que assim possa ler
novelas, poesias e romances ”.
Desde pequena aprendi que
não deveria deixar que o outro controlasse minha vida, sou forte, guerreira,
sou anjo, flor que nasceu no deserto seco e árido, sou rosa com espinhos. Às
vezes sou beija-flor, rouxinol, às vezes sou ave de rapina; às vezes apenas uma
criança que precisa de carinho e amor. Amor que encontrei nos braços de quem
não devia, ou devia?
Mas pela misericórdia
Divina, um anjo foi posto em minha vida. Um anjo que sofreu que veio do nada,
que veio do cativeiro; entretanto que me ajudou a trilhar uma linda história.
Hoje... ela se foi há 20 anos. Esse anjo um dia dormia e acordou com uma forte
dor no peito; que fez seu coração sangrar. Como se estivesse rasgando o véu de
sua sensibilidade, assim como rasgou o véu do tempo. Ela partiu, viveu até que
muito?! Amanhã completarei 95 anos de idade, e ela completaria 100 anos, mês
que vem. A vida que foi tão ingrata com ela, também a deu muitas felicidades.
Nasceu de pele clara; olhos claros, porém marcada, corria em suas veias o
sangue de gente forte, guerreira, audaz e que sabe
o que quer da vida. Sua única falha de caráter foi ter nascido em uma época de
muita repressão, onde o homem era julgado por sua cor de pele, pelo dinheiro
que carregava na algibeira.
Em um tempo onde a vida das mulheres brancas,
negras, ricas ou pobres restringia-se ao território do lar. Viviam como bicho,
seres de baixa competência intelectual. Aos mandos e desmandos de uma sociedade
patriarcal e machista. Quantas não foram as Marias, Joanas, Marianas, Marcelas,
Helenas, Glórias e Saras que se casaram por imposição de seus pais e irmãos,
mais velhos. Casamentos que nada tinham de românticos. Príncipes não existiam
apenas casamentos de interesses. Matrimônios mera e exclusivamente para
aumentar o poderio de ambas às famílias. Riquezas incalculáveis eram unidas,
primos casavam entre si, apenas para que se mantivessem em família os
patrimônios.
Dias difíceis, onde se valia pelo que se tinha pelo
que se ostentavam. Pais faziam de suas filhas estandartes de suas riquezas,
maridos usavam-nas como bibelôs. Bonecas de porcelana que andava para cima e
para baixo ostentando joias, roupas e carros luxuosos. Uma vida de mentira e
ostentação. Choro e ranger de dentes, vindos das sedes, eram ouvidos pelos
escravos na senzala. Pois mantinham para a sociedade, uma imagem de bom marido,
de ótimo pai; mas traíam suas esposas com meretrizes e com suas próprias escravas.
A eles tudo, a elas nada!
Passei por
muita coisa nesta vida. Tive filhos e filhas, netos e netas; porém, hoje, vivo
sozinha. O homem da minha vida se foi durante a primeira guerra mundial. Isso,
sim, é terrível. Meus olhos já estão cansados, minhas mãos já não têm mais as
destrezas de outrora; meus pés que eram ligeiros e faceiros, hoje me ajudam a
caminhar com dificuldade. Meus olhos viram muitas coisas; a queda da monarquia
e a acessão da república. Participei do último baile da monarquia, na ilha
fiscal, ao lado do homem da minha vida. Minha fiel escudeira se foi, há muito
tempo, mas me deixou seus filhos maravilhosos. Essa é a vida, nascemos,
crescemos, constituímos família e partimos; não há como escapar da navalha da
morte. Não sei se a minha partida ainda vai demorar, porque o amanhã pertence
exclusivamente a Deus; Autor e Consumador de tudo que se move sobre a terra.
Fecho esse diário com a certeza de que o amanhã
nunca chegará, e que tudo pode ser apenas um sonho. E que a vida seja apenas
uma miragem no deserto. Eu sou apenas uma amante e conhecedora desta vida, que
é através da dor e do sofrimento que nos ensina o que é realmente viver e amar.
Viver é sucumbir às dores, é rir; é chorar, é amar, é apenas viver!
Sou filha de brancos, adotada pelos negros, sou
forte, guerreira, mulher, mãe, amante, senhora, menina, moleca... sou eu filha
da luz! Amada por muitos, odiada por poucos. Prazer; chamo-me Helena.... Aquela
que veio para ser servida, mas que serviu aos outros durante a vida inteira.
Nasci para ser senhora, mas tornei-me escrava de meu próprio destino.
Trecho retirado do diário particular de Helena; encontrado por uma
descendente dela 150 anos depois de seu nascimento.
Memórias de uma infância
Bellarrosa, 15 de janeiro
de 1840.
Antes de contar-lhes as desventuras amorosas de nossa
heroína, devo-lhes contar um pouco de sua infância e mocidade; que com certeza
foram os anos mais felizes de sua vida. Refestelou-se nas coisas boas em que
apenas a inocência e a juventude podem-lhe oferecer. Não poderia passar em
branco às vezes em que passou à beira do riacho; para onde as negras levavam as
roupas da casa-grande para lavar. A sinhazinha e os filhos das escravas
aproveitavam que suas mães passariam o dia inteiro a beira do rio, lavando
roupa, para nadarem e brincarem as margens do rio Paraíba do Sul. A baronesa de
águas claras sempre a deixava nadar com as crianças, mas sempre ia acompanhada
de sua tutora. Uma bela senhorita inglesa que falava quatro idiomas e lhe fora
trazida de Londres, de origem nobre e filha de um grande amigo do finado barão.
Esse foi apenas um dos motivos que lhe trouxera ao Brasil. Estava no seio da
família Albuquerque há pouco mais de dois anos e ainda não havia acostumado ao
calor infernal daqui. A inglesinha vivia reclamando.
–– Oh, país infernal! –– Berrava enquanto se abanava
–– Como essa gente aguenta ficar exposta debaixo desse sol? Esse calor é pior
que o inferno: descrito nos sermões do padre.
Charlotte Mitchell O’Hara parecia um anjo de cabelo
loiro, compridos e quase translúcidos, olhos de um azul-celeste, traços
delicados; cintura finíssima, um busto proeminente, pele rosada e macia
castigada pelo sol. Os seios arfavam sobre o decote do vestido, os cabelos
caíam sobre os ombros em cachos. Seus dotes eram imensos, falava quatro idiomas
com extrema fluência: francês, português, alemão e italiano; pintava, bordava,
cozia, tocava piano e cantava como ninguém. Justamente por isso foi trazida de
Londres para servir de tutora à menina. O barão havia conhecido o pai da
inglesinha em uma de suas viagens de negócio.
Aos dez anos, Anna Helena, falava inglês, francês e
estava aprendendo o alemão; bordava, pintava, cantava e declamava poemas.
Charlotte estava sempre ao seu encalço, usando a clássica capa de veludo negro
e a sombrinha púrpura, para evitar que a pele fosse ainda mais castigada pelo
sol.
Antes que tutora e aprendiz pudesse deixar o
alpendre, da casa, a baronesa fazia uma longa lista de deveres e cuidados que
deveriam tomar.
–– Charlotte, não deixe Anna Helena exposta ao sol,
por muito tempo. Cuidado com cobras, aranhas e bichos venenosos. Ah, antes que
eu me esqueça: cuide dos modos dela. Não a deixe se comportar como se fosse
filha de um colono.
O discurso da baronesa era pior, que o sermão do
padre da paróquia de Sant’ Anna. Era sempre o mesmo discurso, todas as vezes
que a tutora saía com sua pupila, à menina já havia gravado na mente as
palavras da mãe. Assim que deixavam as dependências da casa, Charlotte repetia
com grande sotaque inglês a alocução que ouvira a pouco da baronesa; as duas
caíam na gargalhada. Assim que o coche apeava junto à margem do rio, a ama e
tutora despia a menina de suas roupas de passeio e vestia-lhe as roupas de
banho. Assim passavam a tarde inteira, até o debruçar do sol sobre as colinas.
–– Helena venha aqui, menina! –– Exclamou a jovem
com grande sotaque. –– Por Deus, menina... não faça isso! Ou sua mãe, me
mandará embora. Sai daí! A torrente está forte.
Heleninha corria para junto de sua tutora, mas logo
se esquecia do perigo e voltava a fazer o que não devia. A ama ralhava
novamente, no entanto, a menina fazia pouco caso. Gostava muito de se banhar
com as outras crianças.
Charlotte ficava muito nervosa e dizia:
–– Menina venha cá, agora! –– A ama sorrir ao ver as
traquinagens da menina. Mas aquele era seu trabalho fazer a tutela da jovem. ––
Sua madre não a quer brincando com esses negrinhos. Tu és uma menina e deve se
comportar como tal!
“Deus do céu... que a baronesa não veja isso, ou
serei extraditada. Como pode uma menina de família rica se comportar como uma escrava?
” –– Pensava Charlotte enquanto repreendia com Heleninha.
A menina Helena parecia não ligar para os achaques
da mãe. Subia nas pedras e pulava, mergulhava e ficava muito tempo em baixo da
água. Adorava subir em árvores frutíferas para colher-lhes as frutas e
saboreá-las com as mãos. Gostava muito de se lambuzar com manga, acerola,
goiaba, jabuticaba entre outras frutas. Helena mais parecia um menino de
vestidos. Não havia lugar naquela fazenda que ela já não houvesse frequentado:
do estábulo dos cavalos à senzala, do roseiral à estufa de vidro suíço, além do
pomar, que era seu lugar favorito. A garotinha Albuquerque já aprontou tanta
peraltice que, se parássemos para contar, precisaríamos de dois ou três volumes
apenas para os seus primeiros anos de vida.
Charlotte sempre mentia, para a baronesa, no intuito
de proteger sua aluna; contudo corrigia-lhe quando preciso. Quando não estava
brincando, estava na biblioteca, estudando francês, inglês, alemão ou bordado.
Muitos dias se passaram até que no mês de abril, Helena, foi informada que
seria enviada para a casa de sua avó em Portugal, depois para o colégio de
freiras. Helena completou 14 anos, duas semanas antes, uma grande festa havia
sido feita para sua apresentação à sociedade.
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