domingo, 14 de janeiro de 2018

Diário de Helena   


Bellarrosa, Vale do Paraíba, 25 de novembro 1900.

Minha vida sempre foi cheia de altos e baixos, vivi uma vida maravilhosa, conheci pessoas maravilhosas, amei, fui amada, chorei e servi de consolo para que outros chorassem. A vida é assim! Sofri mais do que carecia, amei mais do que precisava; mas sempre tive para comigo que tudo que passamos é para um crescimento pessoal e espiritual. Fui uma mulher bastante à frente de meu tempo. Meu pai me amava, minha mãe sofria por me ver feliz, não, ela não me odiava. Mas era amarga consigo mesma, porque, odiava o fato de ter deixado que outros mandassem em sua vida... já que, nunca teve coragem de ir contra os dogmas e leis impostas pelos homens e pela igreja; onde a mulher deveria obediência primeiramente a seus pais e depois a seu marido; na falta de pai, quem possuía poder sobre si era seu irmão, varão, mais velho... Vida que viveu infeliz.
E isso, ela, não aceitava, pois, meu pai criou a mim e à minhas queridas irmãs com liberdade. Nunca nos impôs nada, tanto é que minhas irmãs casaram por amor. Odiava a forma a que ele conduziu a educação de suas filhas. Queria que ele nos tratasse a rédeas curtas. A única coisa que ele não nos permitiu foi o estudo científico. Ele dizia: “mulher precisa aprender a lidar com a casa, estudo é para homens. O máximo que uma mulher pode aprender é a leitura, para que assim possa ler novelas, poesias e romances ”. 
Desde pequena aprendi que não deveria deixar que o outro controlasse minha vida, sou forte, guerreira, sou anjo, flor que nasceu no deserto seco e árido, sou rosa com espinhos. Às vezes sou beija-flor, rouxinol, às vezes sou ave de rapina; às vezes apenas uma criança que precisa de carinho e amor. Amor que encontrei nos braços de quem não devia, ou devia?
Mas pela misericórdia Divina, um anjo foi posto em minha vida. Um anjo que sofreu que veio do nada, que veio do cativeiro; entretanto que me ajudou a trilhar uma linda história. Hoje... ela se foi há 20 anos. Esse anjo um dia dormia e acordou com uma forte dor no peito; que fez seu coração sangrar. Como se estivesse rasgando o véu de sua sensibilidade, assim como rasgou o véu do tempo. Ela partiu, viveu até que muito?! Amanhã completarei 95 anos de idade, e ela completaria 100 anos, mês que vem. A vida que foi tão ingrata com ela, também a deu muitas felicidades. Nasceu de pele clara; olhos claros, porém marcada, corria em suas veias o sangue de gente forte, guerreira, audaz e que sabe o que quer da vida. Sua única falha de caráter foi ter nascido em uma época de muita repressão, onde o homem era julgado por sua cor de pele, pelo dinheiro que carregava na algibeira.
Em um tempo onde a vida das mulheres brancas, negras, ricas ou pobres restringia-se ao território do lar. Viviam como bicho, seres de baixa competência intelectual. Aos mandos e desmandos de uma sociedade patriarcal e machista. Quantas não foram as Marias, Joanas, Marianas, Marcelas, Helenas, Glórias e Saras que se casaram por imposição de seus pais e irmãos, mais velhos. Casamentos que nada tinham de românticos. Príncipes não existiam apenas casamentos de interesses. Matrimônios mera e exclusivamente para aumentar o poderio de ambas às famílias. Riquezas incalculáveis eram unidas, primos casavam entre si, apenas para que se mantivessem em família os patrimônios.
Dias difíceis, onde se valia pelo que se tinha pelo que se ostentavam. Pais faziam de suas filhas estandartes de suas riquezas, maridos usavam-nas como bibelôs. Bonecas de porcelana que andava para cima e para baixo ostentando joias, roupas e carros luxuosos. Uma vida de mentira e ostentação. Choro e ranger de dentes, vindos das sedes, eram ouvidos pelos escravos na senzala. Pois mantinham para a sociedade, uma imagem de bom marido, de ótimo pai; mas traíam suas esposas com meretrizes e com suas próprias escravas. A eles tudo, a elas nada!     
 Passei por muita coisa nesta vida. Tive filhos e filhas, netos e netas; porém, hoje, vivo sozinha. O homem da minha vida se foi durante a primeira guerra mundial. Isso, sim, é terrível. Meus olhos já estão cansados, minhas mãos já não têm mais as destrezas de outrora; meus pés que eram ligeiros e faceiros, hoje me ajudam a caminhar com dificuldade. Meus olhos viram muitas coisas; a queda da monarquia e a acessão da república. Participei do último baile da monarquia, na ilha fiscal, ao lado do homem da minha vida. Minha fiel escudeira se foi, há muito tempo, mas me deixou seus filhos maravilhosos. Essa é a vida, nascemos, crescemos, constituímos família e partimos; não há como escapar da navalha da morte. Não sei se a minha partida ainda vai demorar, porque o amanhã pertence exclusivamente a Deus; Autor e Consumador de tudo que se move sobre a terra.
Fecho esse diário com a certeza de que o amanhã nunca chegará, e que tudo pode ser apenas um sonho. E que a vida seja apenas uma miragem no deserto. Eu sou apenas uma amante e conhecedora desta vida, que é através da dor e do sofrimento que nos ensina o que é realmente viver e amar. Viver é sucumbir às dores, é rir; é chorar, é amar, é apenas viver!
Sou filha de brancos, adotada pelos negros, sou forte, guerreira, mulher, mãe, amante, senhora, menina, moleca... sou eu filha da luz! Amada por muitos, odiada por poucos. Prazer; chamo-me Helena.... Aquela que veio para ser servida, mas que serviu aos outros durante a vida inteira. Nasci para ser senhora, mas tornei-me escrava de meu próprio destino.
Trecho retirado do diário particular de Helena; encontrado por uma descendente dela 150 anos depois de seu nascimento.






Memórias de uma infância



Bellarrosa, 15 de janeiro de 1840.

Antes de contar-lhes as desventuras amorosas de nossa heroína, devo-lhes contar um pouco de sua infância e mocidade; que com certeza foram os anos mais felizes de sua vida. Refestelou-se nas coisas boas em que apenas a inocência e a juventude podem-lhe oferecer. Não poderia passar em branco às vezes em que passou à beira do riacho; para onde as negras levavam as roupas da casa-grande para lavar. A sinhazinha e os filhos das escravas aproveitavam que suas mães passariam o dia inteiro a beira do rio, lavando roupa, para nadarem e brincarem as margens do rio Paraíba do Sul. A baronesa de águas claras sempre a deixava nadar com as crianças, mas sempre ia acompanhada de sua tutora. Uma bela senhorita inglesa que falava quatro idiomas e lhe fora trazida de Londres, de origem nobre e filha de um grande amigo do finado barão. Esse foi apenas um dos motivos que lhe trouxera ao Brasil. Estava no seio da família Albuquerque há pouco mais de dois anos e ainda não havia acostumado ao calor infernal daqui. A inglesinha vivia reclamando.
–– Oh, país infernal! –– Berrava enquanto se abanava –– Como essa gente aguenta ficar exposta debaixo desse sol? Esse calor é pior que o inferno: descrito nos sermões do padre.
Charlotte Mitchell O’Hara parecia um anjo de cabelo loiro, compridos e quase translúcidos, olhos de um azul-celeste, traços delicados; cintura finíssima, um busto proeminente, pele rosada e macia castigada pelo sol. Os seios arfavam sobre o decote do vestido, os cabelos caíam sobre os ombros em cachos. Seus dotes eram imensos, falava quatro idiomas com extrema fluência: francês, português, alemão e italiano; pintava, bordava, cozia, tocava piano e cantava como ninguém. Justamente por isso foi trazida de Londres para servir de tutora à menina. O barão havia conhecido o pai da inglesinha em uma de suas viagens de negócio.
Aos dez anos, Anna Helena, falava inglês, francês e estava aprendendo o alemão; bordava, pintava, cantava e declamava poemas. Charlotte estava sempre ao seu encalço, usando a clássica capa de veludo negro e a sombrinha púrpura, para evitar que a pele fosse ainda mais castigada pelo sol.
Antes que tutora e aprendiz pudesse deixar o alpendre, da casa, a baronesa fazia uma longa lista de deveres e cuidados que deveriam tomar.
–– Charlotte, não deixe Anna Helena exposta ao sol, por muito tempo. Cuidado com cobras, aranhas e bichos venenosos. Ah, antes que eu me esqueça: cuide dos modos dela. Não a deixe se comportar como se fosse filha de um colono.
O discurso da baronesa era pior, que o sermão do padre da paróquia de Sant’ Anna. Era sempre o mesmo discurso, todas as vezes que a tutora saía com sua pupila, à menina já havia gravado na mente as palavras da mãe. Assim que deixavam as dependências da casa, Charlotte repetia com grande sotaque inglês a alocução que ouvira a pouco da baronesa; as duas caíam na gargalhada. Assim que o coche apeava junto à margem do rio, a ama e tutora despia a menina de suas roupas de passeio e vestia-lhe as roupas de banho. Assim passavam a tarde inteira, até o debruçar do sol sobre as colinas.
–– Helena venha aqui, menina! –– Exclamou a jovem com grande sotaque. –– Por Deus, menina... não faça isso! Ou sua mãe, me mandará embora. Sai daí! A torrente está forte.
Heleninha corria para junto de sua tutora, mas logo se esquecia do perigo e voltava a fazer o que não devia. A ama ralhava novamente, no entanto, a menina fazia pouco caso. Gostava muito de se banhar com as outras crianças.
Charlotte ficava muito nervosa e dizia:
–– Menina venha cá, agora! –– A ama sorrir ao ver as traquinagens da menina. Mas aquele era seu trabalho fazer a tutela da jovem. –– Sua madre não a quer brincando com esses negrinhos. Tu és uma menina e deve se comportar como tal!
“Deus do céu... que a baronesa não veja isso, ou serei extraditada. Como pode uma menina de família rica se comportar como uma escrava? ” –– Pensava Charlotte enquanto repreendia com Heleninha.
A menina Helena parecia não ligar para os achaques da mãe. Subia nas pedras e pulava, mergulhava e ficava muito tempo em baixo da água. Adorava subir em árvores frutíferas para colher-lhes as frutas e saboreá-las com as mãos. Gostava muito de se lambuzar com manga, acerola, goiaba, jabuticaba entre outras frutas. Helena mais parecia um menino de vestidos. Não havia lugar naquela fazenda que ela já não houvesse frequentado: do estábulo dos cavalos à senzala, do roseiral à estufa de vidro suíço, além do pomar, que era seu lugar favorito. A garotinha Albuquerque já aprontou tanta peraltice que, se parássemos para contar, precisaríamos de dois ou três volumes apenas para os seus primeiros anos de vida.
Charlotte sempre mentia, para a baronesa, no intuito de proteger sua aluna; contudo corrigia-lhe quando preciso. Quando não estava brincando, estava na biblioteca, estudando francês, inglês, alemão ou bordado. Muitos dias se passaram até que no mês de abril, Helena, foi informada que seria enviada para a casa de sua avó em Portugal, depois para o colégio de freiras. Helena completou 14 anos, duas semanas antes, uma grande festa havia sido feita para sua apresentação à sociedade.



0 comentários:

Postar um comentário