Conhecendo os lusíadas
O dia 10 de março havia chego junto com uma forte
chuva. Uma chuva torrencial com tudo que tinha direito, raios, ventos fortes,
granizo e trovões. Os trovões iluminavam toda a fazenda. Enquanto isso, nos
aposentos da sinhazinha Anna Helena; a baronesa e um batalhão de mucamas preparavam
as bagagens da moça. Lá fora o coche que levaria a jovem até a estação de trem
de Bellarrosa, aguardava-a no alpendre. Enquanto sua bá ajudava-lhe a se
vestir, a baronesa e mais duas escravas fechavam as últimas caixas e baús. Logo
o aposento, da sinhazinha, foi tomado por dois escravos que carregaram as
coisas para o coche. No aposento ao lado Charlotte preparava-se para voltar à
Inglaterra, sua missão ali havia findado.
Meia hora depois, o coche, já estava a caminho da
estação. Na carruagem ia baronesa, Charlotte, Anna Helena e Magnólia uma
escrava que a jovem havia recebido, na noite anterior, como dama de companhia.
A diligência parou diante da entrada principal da estação, os negros desceram e
levaram os baús de Helena e de Charlotte para a plataforma; onde aguardaram a
chegada da locomotiva. A baronesa Leopoldina, a menina Helena e sua comitiva
embarcaram no trem; onde foram conduzidas a suas devidas cabines. Pouco mais de
seis horas depois, saltaram na estação de Macaé, lá pegaram um carro de aluguel
para ir ao porto onde se separariam.
Após as despedidas protocolares. Anna Helena e sua
mucama embarcaram no paquete, que iria para Portugal. Charlotte hospedou-se em
um hotel, próximo ao porto, pois o navio que a levaria à Inglaterra só sairia no
dia seguinte. Aquela foi à última visão que Helena teve de Charlotte,
balançando em um sincronismo desordenado as luvas e seu leque de madrepérola. A
senhorita Albuquerque da proa e Charlotte do porto; foi uma visão comovente,
pois depois de tantos anos juntas teriam que se separar. O navio afastou-se da
marina e, a carruagem onde estava Charlotte partiu para o Grão-Palace Hotel.
Deixando para Helena, apenas, lembranças boas de um tempo que não voltará mais.
Aquela foi à última vez que a menina viu as terras tupiniquins. A pobre partiu
sem saber o dia nem a hora que voltaria a ver sua genetriz. O navio seguiu mar
à dentro, aos poucos a terra foi se perdendo no horizonte; em poucas horas já
não se conseguia ver mais nada, apenas uma fina faixa verde no horizonte
destacava-se diante de tanta água.
A jovem Albuquerque caminhou pela proa, sentou-se um
pouco para ver o pôr do sol, que se debruçava no horizonte. Parecia submergir
no oceano, deitar-se sobre as ondas e desaparecer na imensidão das águas. O
imenso tapete azul cercava o navio por todos os lados cerceando sua grandeza as
margens do litoral de Macaé. Tudo se tornava pequeno, menos a dor que se
hospedava, agora, no peito de uma jovem donzela. Um misto de dor, medo e
aflição tomara de assalto o âmago de Anna Helena, sofria por antecipação, ela
sabia que a partir daquele momento sua vida mudaria para o bem, ou para o mal.
Fato é que sentirá muita falta de amigos e familiares. O início da viagem
transcorreu de forma tranquila, o mar encontrava-se calmo, sereno, parecia um
esteio de terra firme. Ao longe podia se ver o continente se perdendo, ficando
cada vez mais longe; gaivotas passavam perto da embarcação que ia mansamente
como se planando sobre a água. Golfinhos e outras espécies da vida marinha
começaram a acompanhar a nau.
Anna Helena permaneceu ali, sozinha, mais algum
tempo, até que Magnólia regressou ao convés. Vinha do camarote onde arranjava
os pertences de sua senhora em seus devidos lugares. Até por que, àquela seria
a morada de ambas pelos próximos meses. Quando Magnólia encontrou sua senhora,
ela estava sentada em uma cadeira de madeira própria para convés. Foi aí, que
um dos tripulantes tocou uma corneta e anunciou: que o jantar com o comandante
seria servido daqui a algumas horas.
–– Vim buscá-la, senhorita. –– Disse Magnólia
enquanto tocava delicadamente as costas da patroa –– O jantar com o comandante
acaba de ser anunciado. Vamos, o seu camarote já está preparado. Falta ainda
escolhermos sua roupa.
–– Veja bem, Magnólia... –– Iniciou a menina ainda
sentada –– Você nasceu escrava e sabe que é escrava. –– Ela deu uma pequena
pausa e concluiu –– E, eu que nasci branca, rica, bonita de certa forma, mas
não possuo a minha verdadeira liberdade... –– Helena apontou para a linha do
horizonte e meneou –– Lá, lá longe... Ali, onde começa a terra, ficará
sepultado o meu coração, minha alma.
–– Deixemos essa prosa para lá, sinhá. –– A mucama
tentou dissimular a conversa –– Veja? A vida lhe abrirá novos caminhos, novas
oportunidades, a sinhá conhecerá novas pessoas. Fará novos amigos, e quem sabe,
conhecerá um mancebo de boa família, a quem, a sinhazinha amará e se entregará.
–– Qual? –– Raiou ela –– Acabei de completar quinze
primaveras e fui arrancada do seio de minha família. –– Anna Helena ergueu-se e
foi para o balaústre do navio –– Meu pai se foi há dois meses e minha mãe, nem
esperou ele esfriar no caixão para me mandar embora.
–– Que isso sinhá?! –– Disse Magnólia –– Vossa mãe
está apenas pensando em seu futuro.
–– Pois bem, se assim fosse, ela ter-me-ia deixado
ficar na fazenda. Com meus amigos e irmãos. –– Anna Helena era apegada aos
escravos da fazenda, desde tenra idade vivia aos rodeios pela senzala, onde se
sentia em casa.
A conversa durou mais alguns minutos, até que
Magnólia conseguiu convencer a menina que deveria entrar e se trocar. A menina
entrou em seu camarote, despiu-se e foi tomar banho. Depois do banho, Anna Helena,
seguiu para a acomodação onde se secou, vestiu as roupas de baixo e depois o
vestido de gala. Leninha, aquela noite, usou um dos vestidos que sua mãe havia
mandado trazer da Corte. Era um traje em musselina, com bordados em renda
francesa, um decote canoa, babados no colo e um corpete bem estruturado com
barbatanas de baleia, todo bordado com pedrarias e fios de ouro. Depois do
jantar houve um pequeno sarau, para o capitão, onde participaram alguns poucos
convidados da nobreza; entre eles Anna, que era filha de um barrão e
parlamentar do império. Helena valsou com o capitão e com mais dois rapazes, em
seguida, o rapaz mais jovem a acompanhou até seu camarote, onde a deixou aos
cuidados da dama de companhia.
–– Gentil da sua parte. –– Disse Helena enquanto
olhava para o belo mancebo que se apresentava a sua frente.
–– Não foi nada, minha cara! –– Respondeu ele, com
um leve beijo na mão, seguido de uma mesura. –– Fiz apenas o que um cavalheiro
deve fazer.
–– Desculpe-me. –– Proferiu claramente consternada
–– Sei que é uma tremenda indelicadeza, mas os rodopios da valsa me fizeram
esquecer vosso nome. Como o senhor, se chama mesmo?
O rapaz riu e olhando-a novamente nos olhos disse:
–– Não é nada. –– Sorriu ele –– Na verdade não
cheguei a me apresentar para você, ou seja, não foi um deslize seu. Foi uma
delicadeza sua: dizer que não se lembrava de meu nome, outra teria dito que eu
não me havia apresentado. –– Meneou enquanto brincava com um cacho, que caia
sobre os ombros de Anna Helena. –– Me chamo Maurício de Castro Soares, sou
filho de um deputado amigo do imperador. Estou indo para Portugal estudar na
faculdade de Coimbra. E você, como se chama?
–– Me chamo Anna Helena Menezes de Albuquerque
Mendonça Queirós, sou
filha de um parlamentar e barão. –– Ela encarou o rapaz novamente e com um
olhar feroz concluiu –– Desculpe-me, mas eu não deveria estar com um rapaz em
um corredor semiescuro e falando de minha vida privada. –– Anna Helena ia
virando-se para abrir a porta, quando foi impedida pelo jovem rapaz de olhos
azuis. –– Por favor, queira soltar o meu braço. O senhor está machucando-me,
não tens o direito de apertar-me desta forma. Mal me conhece!
–– A senhorita se engana, a conheço desde o berço.
–– Helena olhou para o rapaz com um olhar assustado e desafiador ao mesmo
tempo. –– Você não é filha do barão Leopoldo de Mendonça e Albuquerque?
–– Ora essa? –– Berrou ela –– Ou o senhor me solta,
ou gritarei até acordar todo o navio!
–– Não será necessário. Já a deixarei em paz. Não
queria incomodar-lhe de jeito nenhum, mas como ficaremos trancados dentro desta
joça, alguns dias, pensei que poderíamos ser amigos. –– O rapaz a soltou, e
olhou dentro de seus olhos. Helena conseguiu enxergar, dentro daqueles olhos
azuis, sinceridade. Aos seus olhos aquele mancebo contava pouco mais de vinte
anos, possuía um porte de homem, mas seus traços e feições eram ainda de um
menino que usava cueiros. –– Podemos ser amigos? –– Perguntou ele estendendo as
mãos para ela. Maurício era um rapaz de estatura mediana, olho e cabelo claro,
porte esbelto, possuía a postura de um cavalheiro; seus trajes eram benfeitos,
andava sempre bem alinhado e mantinha a postura de um aristocrata.
Helena estendeu a mão e com um aperto de mão ela
disse:
–– Podemos sim! –– Afirmou ela com a cabeça –– Desde
que você prometa que nunca mais se comportará desta forma. Estou nesse navio,
pois vou à casa de minha avó e depois irei para um colégio de freiras. –– Ela
se virou para pegar a maçaneta, para abrir a porta, mas Magnólia havia escutado
o final da conversa e foi abri-la.
Eles se despediram e Helena regressou ao seu
camarote.
–– Quem era esse rapaz, minha senhora? –– Indagou Magnólia
–– A senhora já o conhecia, ou o conheceu aqui? O que ele queria?
–– Calma... Magnólia –– Disse a jovem enquanto se
sentava em uma cadeira –– Ele é apenas o filho de um deputado, se chama
Maurício. Ele veio-me trazer até aqui, pois já estava tarde, e ele foi o último
rapaz que valsei. Ele se sentiu na obrigação de me acompanhar.
–– Mas ele parecia querer te agarrar?
–– Impressão sua!
–– Que nada, conheço bem aquele olhar de macho. Sou
ainda donzela, mas vi muita menina na senzala ser arrastada pelos feitores com
aqueles olhos de lobo faminto. –– Magnólia começava a soltar a fita do
espartilho. –– Tive a sorte de ser escolhida desde nova, pelo senhor seu pai,
para ser sua dama de companhia. No lugar de senzala fui enviada para um colégio
de mucamas. Mas ainda cheguei a ver cenas desse tipo, até mesmo de alguns
amigos de vosso pai que ia a fazenda.
–– Estou começando a gostar desse papo, me fale mais
dos lobos famintos! –– Retroagiu ela com um sorriso sarcástico –– Creio que vou
gostar dessa viajem.
–– Não, ainda sóis uma menina para ficar ouvindo
esse tipo de conversa. –– Raiou a mucama –– E não diga um trem desses, nem de
brincadeira... se os vossos pais descobrem que deu liberdade para um rapaz,
eles a mataram e depois me matam.
–– Deixe de drama! –– Leninha a essa altura já
estava em pé. A mucama terminava de retirar a pesada saia-balão de sua cintura,
depois desatou o corset e colocou-lhe a camisola de cetim. A sinhazinha voltou
a se assentar novamente na poltrona da penteadeira, Magnólia com todo o cuidado
do mundo começou a desfazer-lhe o penteado; primeiro retirou os grampos e os
chinós, depois fez uma trança comprida e por cima colocou uma touca de algodão.
Os dias subsequentes foram agradáveis para ambos,
Maurício, Helena e a dama de companhia passavam boa parte do dia na proa e na
popa da nau. Iam de um lado para o outro falando amenidades da vida. O rapaz
nunca mais tentou agarrar a jovem, até por que não ficavam mais a sós. Depois
da última conversa que teve com sua senhora; Magnólia preferiu fazer marcação
cerrada, já que temia por um deslize dela.
Naquele dia, após o jantar, Anna Helena seguiu para
sua cabine trancando-se lá. Heleninha trocou as vestes, abriu um baú e pegou um
livro. Sentou-se em uma cadeira e enquanto lia, a mucama Magnólia desfazia-lhe
o penteado escovando as longas madeixas, com uma escova de cerdas macias.
Magnólia era sem sombra de dúvida uma mulata lindíssima, de pele clara e de
cabelo levemente ondulados. Se não fosse sua condição de criada, passaria
facilmente por uma sinhazinha em qualquer salão da corte.
A viagem durou, mais ou menos, quatro semanas e
meia. Alguns dias depois de ter deixado o Brasil, o navio ancorou no velho
mundo. Terra de Camões, Gil Vicente, Fernão Lopes, Almeida Garrett, entre
outros. Solo dos bandeirantes, homens que deixavam tudo para ganhar o mundo.
Helena, assim que desembarcou em Lisboa, foi recebida por uma freira que a
aguardava há horas. A freira se apresentou como madre superiora do colégio de
freiras, onde Helena estudaria, e amiga de sua avó. A religiosa estava na casa
de seus sessenta e cinco anos; o hábito cobria-lhe o corpo todo deixando apenas
as mãos e o rosto de fora. Seu rosto ainda conservava certo frescor de
juventude.
–– Bom dia, senhorita! –– Disse a freira com um
sorriso de orelha a orelha. –– Talvez você seja Helena, filha do barão Leopoldo
de Mendonça?
–– Sim, sou eu! –– Respondeu Helena sorrindo. ––
Quem é a senhora?
–– Muito prazer! –– Objetou a freira. –– Sou a madre
superiora do colégio, onde a senhorita deverá passar alguns anos!
–– Meu nome é Helena Albuquerque. –– Disse ela
enquanto estendia a mão para a religiosa – – Filha do falecido barão de Três
Marias e da baronesa Leopoldina de Alencar. O prazer é todo meu... – Murmurou Anna
Helena enquanto fazia uma leve cortesia.
–– Espero que tenha feito boa viagem? –– Perguntou a
simpática senhora. –– Não me disseram que vossa mercê viria acompanhada, por
outra senhorita. – – Ah, não... – – Gargalhou a menina – – Você ganhou o dia, hein.
Magnólia... –– Helena virou-se para a amiga e depois olhou para a freira
novamente. –– A senhora é a segunda que confunde ela com uma dama.
–– Mas, não sóis?
–– Não, ela... bem... deixa eu te explicar, é que
aqui já não se tem mais escravos. Não é?
–– Pois sim, isso é algo contra a natureza humana. ––
A senhora mostrou-se incomodada com o assunto. –– Aqui em Portugal há anos não
temos mais escravos.
–– Bem... – Helena mostrou certo desconforto em ter
que explicar –– Ela é uma espécie de criada pessoal. Ela ajuda-me em tudo a me
vestir, a banhar-me e ainda me faz companhia. – Disse tentando amenizar o fato.
–– Uma espécie de dama de companhia?
–– Isso, isso mesmo! –– Helena também era contrária
à escravidão.
–– A sim, agora podemos ir? Quais são as bagagens de
vossas mercês?
–– Podemos sim, vamos direto para o colégio? ––
Indagou Helena.
–– Ô, não... –– A freira fez cara de surpresa –– A
senhorita vai passar alguns dias na casa de seus parentes. Para que possa se
acostumar ao clima.
–– Já que é assim… por que minha avó não veio me
buscar pessoalmente?
–– Ah... nós somos amigas, ela me encarregou de
buscá-la. Pois está arrumando a casa para sua chegada!
–– Ah, está...
Antes que eu me esqueça, aqui você não poderá
tratá-la como escrava! –– A senhora novamente mostrou o incômodo que possuía
sobre o assunto. –– O Máximo que poderá chamá-la e de dama de companhia ou
criada. Ela terá que receber por seus serviços, mas isso, você vê com sua avó
depois.
–– Tudo bem! Também não gosto de ter escravo! Aqui
ela será minha amiga.
–– Quando for apresenta-la a alguém, apresente-a
como amiga. –– A freira percorreu todo o cais com os olhos. –– Antes que eu me
esqueça, qual é o nome dela mesmo?
–– Magnólia.
–– Prazer, Magnólia. –– Disse a religiosa enquanto
estendia a mão.
–– O prazer é todo meu, senhora! –– Respondeu a
mucama.
Além de bela é muito educada. Jamais diria que é uma
escrava! –– Disse a senhora, enquanto contemplava a beleza de Magnólia. –– Se
veste muito bem está de parabéns.
Como me foi dada como dama de companhia, pedi a meu
pai que lhe deixasse se vestir bem.
–– Sim! Mas ela está bem-vestida por demais. Além
disso, não parece ser negra. Se a visse em qualquer salão daqui ou de Paris,
não diria que é escrava.
–– Lá no Brasil, senhoras de boa família ganham suas
mucamas. Fazemos parte da nobreza brasileira, nossos escravos necessitam se
vestir bem, usam até sapato. –– Helena brincou com o laço de seu vestido –– A
senhora sabe que uma moça de família não pode andar por aí sozinha. Além do
quê? Ela é forra, há muito tempo. Ela também vai estudar lá no colégio, já
aprendeu o básico lá em casa – disse Helena. –– Mas ninguém do convento deve
saber disso, porque ela está aqui como se fosse minha prima.
A religiosa estava diante de Helena com as mãos debaixo
do hábito.
–– Está bem, filha! Agora vamos? –– A senhora sorriu
alegremente. –– Esse será o nosso segredo? – A religiosa fez um sinal de figa
sobre a boca –– Agora deixe isso para lá –– dizia a velha, enquanto sorria. ––
Esses são os seus baús? –– Indagou a senhora.
– São sim! –– Respondeu Helena.
A madre chamou alguns lacaios, que pegaram os
pertences da moça. O coche trazia na porta o brasão da família Albuquerque.
–– Peguem as caixas e os baús e leve-os, para a
carroça aonde irão às bagagens. –– A freira deu as ordens e logo os baús foram
carregados para a carroça. –– Vamos para o coche, senhorita Helena?
–– Sim... podemos ir... –– Anna Helena sorriu,
enquanto caminhava ao lado da freira –– Já que esclarecemos tudo o que tínhamos
pendente.
A senhora enlaçou o braço de Helena e de braços
dados caminharam até o portão de saída. A carruagem estava esperando-as à
soleira da escadaria, assim que todas se acomodaram o cocheiro, seguiu pelas
ruas de paralelepípedo. A viagem de carro não demorou muito, logo chegaram à
casa da viscondessa Maria Teresa. O carro parou diante da porta de madeira
nobre; o lacaio desceu, abriu a portinhola e ajudou à senhora de mais idade
descer, em seguida ajudou as outras duas.
–– Essa... é a casa da minha avó? –– Perguntou Anna Helena
enquanto olhava tudo minuciosamente, atônita, com toda aquela beleza. Não, que
a fazenda onde nasceu não fosse bonita, mas não possuíam o mesmo charme e a
mesma elegância.
–– Não gostou do que está vendo? –– Indagou a madre
superiora. –– Achas muito pequena? Sei eu... estava acostumada a uma fazenda
gigantesca, onde corrias para cima e para baixo de cavalo. Acertei, não é?
–– De certo modo, sim, porém não é isso. –– A menina
ergueu os olhos e olhou para a ampla fachada que se abria a sua frente. –– É
tudo mais bonito que nas fotos levadas por papai quando vinha aqui! Sempre
imaginei que fosse bonito; mas superou minhas expectativas.
As duas foram recebidas, no alpendre da casa, por
uma criada que as conduziu ao átrio do Hall principal. De fato, era a
governanta, uma senhora loura, rechonchuda, de olhos verdes e um tom de pele
rosado; com um forte sotaque francês.
–– Sejam todas bem-vindas... –– A criada olhou para
as duas; e com uma das mãos, indicou uma saleta –– à casa de minha senhora, a
viscondessa de Açores! Creio que essa mocinha seja a hóspede que esperamos há
meses? –– A criada olhou para a madre e concluiu –– Não é, madre superiora?
–– Pois sim, como adivinhou... Marselha? – Murmurou
a madre, colocando a mão sobre ombro da senhorita Albuquerque. –– Onde está a
sua senhora, a viscondessa Maria Teresa?
–– Ela subiu para se trocar; –– a criada apontou para
um sofá de canto e concluiu –– Sentem-se, minha senhora, logo descerá. Queiram
se acomodar!
A madre e a menina pararam diante da porta.
–– Ora, pois... pois... que menina mais linda é
essa?! –– Contrapôs à senhora enquanto passava as mãos nos cachos da menina. ––
Entrem! Esperem-na sala de estar; ela logo descerá. A pobre trabalhou muito e
suas roupas estavam sujas, por isso, foi trocá-las.
As duas entraram se acomodaram e um refresco foi
servido. Aquele dia Lisboa estava quente e abafada. Passava das onze horas da
manhã, o sol a pino; as janelas do palacete estavam abertas. O clima abafado
deixava tudo ainda mais quente. A casa exalava uma áurea de luxo, riqueza,
elegância e certa temperança puritana e eclesiástica.
Se para ela, em sua visão ainda infantil, a frente
do burgo era primorosa e elegante; imagine só a surpresa que teve ao entrar.
Era tudo ainda mais belo. Mobília talhada em madeira nobre jacarandá,
cedro-rosa, jatobá, Ipê, mogno entre outras; nas paredes papéis de parede
adamascados nas cores azul anil, creme, rosa, vinho e vermelho. Cortinas de
veludo molhado e adamascadas, quase no mesmo tom dos papéis de parede. No Hall
de entrada um lustre de cristal belga, com lugar para mais de trezentas velas,
paredes em mármore italiano demonstravam a suntuosidade da nobre que ali
morava; a escadaria principal tinha vinte e três degraus no mais puro mármore
branco; dois grandes pilares de mármore cingiam a escadaria.
Helena e a irmã Felícia foram conduzidas até uma
pequena sala de estar, aguardaram lá por alguns minutos, até que uma senhora de
distintos trajes negros se apresentou. A velha senhora andava com grande
empáfia, com porte de senhora soberana daquele lugar. Com olhar sóbrio, a velha
senhora, adentrou a sala. Calada estava; calada ficou! Observava a movimentação
no ambiente de forma austera, não disse, nem mesmo um bom dia. Parecia não
gostar do que estava vendo. Observou à reação assustada da menina, tímida,
tentara se esconder atrás da madre; percebeu que botava medo na jovem. A velha
possuía realmente um andar soberano, beirava a arrogância e as feições então?
Talvez devesse a posição social e pelo fato de fazer parte da aristocracia
europeia.
Ela, que até então estava sobre o umbral da porta,
caminhou na direção dos sofás; onde as outras duas se encontravam, assim que as
duas perceberam sua aproximação as visitantes se ergueram e fizeram uma mesura.
–– Bom dia… senhorita amiga! –– Balbuciou a madre.
–– Bom dia! –– Respondeu a velha de forma seca. Com
o olhar fixou sobre a menina, caminhou da direção delas.
–– O que fizeram com você, menina?! –– Meneou com um
leve sorriso. –– O gato comeu sua língua, minha jovem rapariga? –– Voltando o
olhar novamente para a madre concluiu –– o que aconteceu com essa jovem, pois
ela não fala. É muda? Perdeu a língua? Não foi com a minha cara? Não gostou da
casa? Dos empregados? Da decoração?
–– Calma, meu anjo! Não precisa ficar tão assustada,
essa senhora é apenas a sua avó. –– Disse a madre enquanto passa a mão sobre a
cabeça da menina –– Ela tem essa cara de mal, mas é um doce.
Menos assustada a menina, Helena, balbuciou um
sorriso, ainda tímido, mas um sorriso entre dentes. Depois devagar saiu detrás
da senhora e estendeu a mão para a avó.
–– O prazer é todo meu. –– Ficou parada diante da
avó e de olhar, agora altivo, disse –– Respondo as vossas perguntas. Não, eu
não sou muda tenho língua. Sim, fui com o semblante da senhora, fiquei apenas
assustada! Gostei muito da vossa casa e a decoração é lindíssima; os empregados
até agora me trataram bem. Não tenho o porquê de não gostar de nada, apenas me
assustei com a vossa entrada.
As duas senhoras se olharam e a mais velha sorriu e
com os olhos vivos disse:
–– Essa rapariguinha me puxou em tudo. Vejo que ela
é faladeira, responde tudo na face. Não possuí freios na língua. –– As duas
caíram na gargalhada.
–– Pois é! –– Respondeu a madre. –– Na verdade eu
sabia que ela era assim. Assustei-me com a atitude dela ao te ver.
–– Foi apenas um ataque de timidez.
Depois de falar pelos cotovelos, a menina, se fechou
novamente em si. “É uma senhora de bom gosto, mas se veste com cores sombrias.
Talvez seja uma viúva convicta, parece-me ser alegre”, pensava a menina. A
velha trajava um lindo vestido de musselina na cor magenta escura com
aplicações de renda na barra; no pescoço trazia um colar de pérola negra; os
cabelos estavam penteados de acordo à moda vitoriana, presos em uma redinha.
–– Está é a tua neta, senhora viscondessa! ... ––
Disse Felícia.
–– Tinha visto-lhe apenas por fotos. –– A senhora
olhou para a garota e sorriu –– Nas quais era, pouco mais, que uma menina de
colo; não tinha saído dos cueiros –– respondeu à velha. –– Passaram-se alguns
anos e ela tornou-se uma bela rapariga.
–– Obrigada! – Respondeu Heleninha. – A senhora é
muito gentil. Pois a beleza é algo inerente à nossa família; pois veja, a
senhora como és bela!
As duas senhoras se entre olharam e sorriram.
–– Vejo que além de bonita e poetisa, a menina! –– A
beata olhava-a com grande desvelo.
–– Como foi de viagem, menina? –– A viscondessa
novamente deu alguns passos no ambiente e volveu-se para junto da poltrona,
onde estava a menina e a madre –– Creio que esteja demasiadamente cansada, não
é, docinho?! –– A velha ergueu a mão e tocou um pequeno sino de cristal, logo
surgiu à governanta sobre o umbral da porta. A viscondessa olhou-a e concluiu.
–– Mande levar as coisas de minha neta para o quarto; onde dormirá e depois lhe
preparem um banho. Ela está cansada.
A governanta saiu fechando a porta em seguida. A avó
de Anna Helena deu um giro sobre seu eixo, com certa destreza para sua idade;
depois olhou para a neta e sorriu-lhe com graciosidade interpelou-a. Já passa
de sessenta e seis anos, mas mantinha o traje a rigor com asseio e elegância.
Em todos os seus anos de vida, jamais alguém que não fosse os seus empregados,
havia a visto em trajes menores, ou com o cabelo desalinhado. Era conhecida na
Corte portuguesa como a dama das sete estrelas, pois usava corriqueiramente
setes estrelas de diamante no cabelo.
–– Antes que suba, devemos resolver a situação da
jovem que a acompanha. –– Iniciou a viscondessa de forma desconfortável. ––
Pelo que me foi passado, lá no Brasil, ela a serviria como mucama, uma espécie
de escrava; mas como aqui em Portugal não temos escravos, terei que pagar por
seu trabalho. Além de ser tratada como uma dama de companhia.
–– Eu já havia passado isso para ela, porém é bom
que vossa mercê ressalte isso. –– A madre, que até então, se mantinha alheia a
tudo se virou para a viscondessa e concluiu –– Peça para que a menina entre.
Você precisa conhecê-la!
A viscondessa tocou novamente o sino e desta vez
apareceu no cômodo a copeira, que passava pelo corredor.
–– Peça para que a menina, que acompanha minha neta,
apresente-se.
A criada saiu e voltou minutos depois. Abriu a porta
e anunciou a entrada de Magnólia. A aia de Helena não estava entendendo nada,
assustada, acreditou que seria reenviada ao Brasil; mas acalmou-se quando foi
recebida por todas com um belo sorriso. Naquele momento teve certeza de que
seus temores não se realizariam.
–– Está aqui, senhora! –– Depois que disse isso, a
criada, fez uma leve reverência, pediu licença deixando-as a sós novamente.
–– Sente-se, minha querida. –– A viscondessa pediu
para que a mulatinha se sentasse ao lado da patroa –– Aqui, você não será
tratada como uma escrava; como seria tratada no Brasil. Você receberá por seu
trabalho, a cada final de mês, assim como recebem as outras criadas pessoais de
outras senhoras e terá uma vida condescende. Não será tratada como uma mucama
ganhará status de uma dama de companhia.
Magnólia estava abismada com o tratamento que
recebia, jamais, nem mesmo em seu mais longínquo sonho, imaginou ser tratada
como uma senhora branca. Conhecia bem o tratamento empregado para as mucamas no
Brasil. Enquanto atravessava o mar pensava em como seria sua vida em Lisboa.
Muitas eram as indagações, mas a que mais lhe perturbava a mente, era se seria
tratada como uma escrava? Acreditou que ali também era maltratada; que viveria
de forma vil e atroz. Porém assim que pisou os pés na casa percebeu que o
tratamento seria outro. Primeiro: Por que não viu nenhum negro; depois por que
não viu nenhum pelourinho; para terminar, percebeu que os empregados eram
tratados de forma diferente em tudo.
–– Sim, senhora! –– Respondeu a aia de Helena, a
cada fala da viscondessa –– Não demonstrava nada, mas por dentro não se cabia
em alegria. Pouco entendia sobre o que a viscondessa estava falando, muito por
causa do sotaque carregado de português da região do Douro. Mas o que mais lhe
perturbava era a forma como era tratada.
–– Está vendo, Magnólia? –– Iniciastes Helena ––
Aqui, vós recebereis o tratamento que eu sempre acreditei que os negros deveriam
ser tratados no Brasil.
A viscondessa olhou para a madre e depois para a
neta, seu olhar demonstrava grande estranheza e grande afeto.
–– Veja só… –– a iniciou –– além de linguaruda, a
menina, também é abolicionista!
–– Sou o quê?
–– Abolicionista! –– Respondeu a madre superiora.
–– O que é isso, vovó?
–– É um termo, ou melhor, uma palavra usada para
pessoas que lutam contra a escravidão. Contra o fim do trágico negreiro.
São pessoas que acreditam que todos somos iguais negros, brancos, mulatos ou
qualquer espécie humana.
–– Essas pessoas são boas?
–– Pois sim! –– A viscondessa se acomodou em uma
poltrona e olhou para as duas jovens –– São boas até de mais, pois consagram
boa parte de suas vidas na luta contra a escravidão. Isso é um pensamento muito
daqui da Europa. No Brasil, esse termo ainda é bem desconhecido. Mas isso é
questão de tempo, pois muitos movimentos abolicionistas estão surgindo por lá.
Logo o mundo todo será livre desta praga, chamada escravidão!
–– Também acredito nisso, minha amiga. –– Disse a
madre superiora.
A conversa sobre conceitos e ideologias durou mais
algumas horas, até que a viscondessa deu permissão para que as meninas
deixassem a sala.
–– Deseja refrescar-se antes do almoço, minha
querida?
–– Sim... –– Respondeu envergonhada.
Novamente ela ergueu o sino, mas desta vez outra
criada entrou.
–– Pois sim... Senhora? –– Disse a serviçal,
enquanto fazia uma leve mesura.
–– Por favor, leve minha neta para seus aposentos e
ajudem-na a se lavar e a se vestir. Hoje, a senhorita, Magnólia não fará a vez
de criada pessoal. Pois assim como minha neta deve estar cansadíssima da
viagem. –– A viscondessa parou e olhando para a criada, que estava próxima a
porta, disse. –– Peça para dona Madalena, à governanta que trabalhava na casa
há anos, preparar o quarto que fica ao lado do da minha neta, para a sua dama
de companhia. Magnólia terá seus trabalhos diários, como qualquer outra aia,
mas será tratada como da família.
As duas mocinhas se olharam e riram. A criada então
chamou a ambas e as conduziu para fora da sala, deixando a viscondessa e a
madre sozinha. Após a saída das meninas a viscondessa lembrou-se de algo, em
passos apressados foi até a porta e colocando a cabeça para fora da sala
avistou-as ainda no corredor. Com voz firme e um pouco alta pediu para que
Helena se aproximasse.
–– Pois sim. –– Respondeu a menina enquanto se
aproximava da avó.
–– Após tomar banho, vestir outra roupa, comer algo
e descansar. Espero-a em meu gabinete, meia hora antes do jantar. Precisamos conversar!
–– Disse de forma imperativa.
Helena engoliu a seco e pensou: “Pronto! Estava tudo
muito bom para ser verdade”.
–– Sim, senhora! –– Essa foi à resposta da menina
antes de dar as costas para a avó, e correr para junto da criada e da amiga,
que as aguardava ao pé da escada.
–– PSIU... venha aqui, menininha! –– Fez a avó.
Helena virou-se e sorrindo perguntou:
–– Algo mais, vovó?
–– Sim, uma dama jamais deve correr desta forma! Não
quero vê-la correndo pelos corredores desta casa. –– Repreendeu a velha de
forma ranzinza, mas com amabilidade na voz. Voz de uma mestra, voz de quem
educa o que realmente é necessário. –– Uma dama não deve correr nem diante de
um incêndio. Deves sempre manter a calma, andar de forma senhoril, mas afável,
forte e leve ao mesmo tempo. Você aprenderá com o tempo, isso é apenas o início
de um longo período. –– Ela deu um sorriso para a menina e concluiu – Agora
pode ir!
Helena diminuiu, então, o ritmo dos passos tentou
imitar o que havia visto a avó fazer. A senhora que ainda estava à porta caiu
na gargalhada. “Ela será como eu. Farei desta menina uma grande dama, porte e
opinião como a avó ela já tem! ”. Pensou enquanto volvia-se para o interior do
cômodo.
As meninas mostraram-se grandes admiradoras dos
conceitos de arte, arquitetura e paisagismo da época. Estavam admiradas com o
edifício, com os móveis, com a arquitetura, na verdade, com tudo. Atravessaram
um longo corredor, antes de alcançar os quartos, onde várias portas, janelões
de madeira e vidro e objetos de decoração se espalhavam pelo ambiente. Helena e
Magnólia encantaram-se com a imensa tela no alto da escadaria principal, onde
estava retratada sua avó, seu avô; seu pai e seus tios anos antes de seu
nascimento. A pintura fica no alto da escadaria principal, onde ela se quebra
no primeiro lance para depois se abrir em mais duas; levando para as duas alas
da mansão, a escada principal era feita de ônix.
Além de sua moldura talhada em madeira nobre e
banhada em ouro, a imagem ficava exposta e circundada por uma pesada cortina de
veludo verde, que dava ainda mais requinte e luxo ao hall de entrada. Na imagem aparecia à viscondessa em um lindo traje
de veludo azul, da época de 1835, o visconde de casaca e cartola, os meninos
com roupas parecidas com as do pai e as meninas com vestidos que deixavam as
calçolas amostra. A imagem foi feita ainda durante a influência do romantismo
na moda, no cotidiano e na vida social das pessoas.
A criada que levava as jovens para seus aposentos
levou à mão a maçaneta da porta, do quarto onde ficaria Helena, abriu-a e pediu
para que as duas jovens entrassem.
–– Peço senhorita Helena, que aguarde um pouco. Vou
a cozinha pegar os baldes com água. –– Disse ela enquanto olhava para a
sinhazinha –– E a senhorita, Magnólia aguarde um pouco enquanto solicito que
preparar seu quarto.
As duas consentiram com a cabeça e se assentaram em
uma poltrona. A criada pediu licença e foi à cozinha de onde trouxe baldes
cheios de água quente e fria. As duas aproveitaram o tempo retardado da criada
para dar uma volta pelos aposentos. O quarto era lindíssimo parecia ter sido
reformado há pouco tempo, claro que para receber a nova moradora. O ambiente
contava com o quarto de dormir, a casa de banho e o toucador.
–– Aonde levará essa porta? –– Indagou Helena que se
inclinava para olhar pela fechadura.
–– Creio que deve ser a interligação do meu quarto
com o da senhora… –– respondeu sem ter certeza Magnólia, que esmeravas se para
olhar por baixo da porta.
–– Acredito que tens razão, pois vejo algumas
criadas limpando-o. –– Helena começo a pular –– que bom que viveremos em
alcovas lado a lado.
Depois do tour
que fizeram por todos os cômodos. Anna Helena foi conduzida pela criada a casa
de banho e Magnólia foi levada para seus aposentos, que de fato era o que elas
tentaram investigar pela fechadura. O quarto onde ficaria Magnólia possuía uma
porta de ligação ao toucador da patroa. Aquilo de fato era uma maravilha para
ambas, já que as duas poderiam ficar até altas horas da noite acordadas. Uma
coisa as duas tinha certeza, era que àqueles seriam os melhores dias de suas
vidas. As duas Estavam totalmente deslumbradas com tudo aquilo que lhes estavam
acontecendo.
–– Não tenha vergonha... –– Disse a serviçal, ao ver
que a menina estava envergonhada. Não era para menos, àquela seria a primeira
vez que outra pessoa; que não fosse sua mãe e sua criada particular a via
desnuda. –– Venha menina linda! –– Iniciou a criada –– entre aqui na tina e se
sentirá melhor. Quero ser sua amiga, não fique com vergonha de mim!
A menina pediu para que a criada virasse de costas,
pois estava com vergonha. Assim que a criada atendeu seu pedido, a menina
saltou dentro da tina e tentou se esconder entre a espuma. O papo entre a
menina e a criada ia muito bem, Anna Helena, pegara confiança na jovem criada e
já não ligava mais para sua seminudez. Quando estavam verdadeiramente
compenetradas em seus assuntos hora frívolo, hora proveitoso, e enquanto a
criada esfregava-lhe as costas, com uma bucha vegetal; uma batida na porta
voltou a tira-las de seus assuntos.
–– Entre. –– Ordenou a criada de forma festiva. ––
Oh, céus… –– falaram de forma ranzinza –– quem se atreveria a nos atrapalhar?
A menina caiu na gargalhada.
A porta se abriu, e desta vez a copeira rompeu o
umbral da porta, entrou, descansou a bandeja que trazia nas mãos sobre um
aparador e concluiu:
–– Buon
pomeriggio, dolce ragazza! –– Iniciou a criada com forte sotaque italiano,
depois fez uma breve reverência; deu alguns passos pela antessala e parou
diante da porta da casa de banho. –– Vossa avó... mandou que trouxessem um
refresco para senhorita. Mi auguro che
sia la soddisfazione di signorina. –– Ela ficou parada diante da porta de
braços cruzados. –– Vejo que vossas mercês já se tornaram amigas?!
–– Hã, hã. –– Respondeu a menina de forma
descontraída.
–– A senhorita prefere tomar o refresco agora… ––
Fez uma pausa na fala –– Ou depois que sair do banho? –– A criada que estava
junto à porta indagou-a. Deu uma olhadela novamente na patroa e retirou-se de
debaixo do umbral, limiar que separava a casa de banho, do toucador, ou
antessala, como também era conhecido o cômodo. Seguiu na direção da mesinha de
centro, usada também na hora de se vestir, aonde à bandeja descansava. Segurou
a bandeja sobre o braço direito, depois, regressou para junto da tina; onde a
menina encontrava-se submersa –– Queres tomar um refresco agora, ou acha melhor
deixar para depois? –– Disse enquanto recolhia o copo de cima da bandeja e
estendia-o na direção da menina. –– Há biscoitos de nata e pastéis de nata, a
senhorita gostaria de prova algumas das delícias portuguesas?
–– Sim! ... –– A criada abaixou-se ao lado da tina e
a menina, de forma infantil, pegou o biscoito na biscoiteira de cristal. Depois
se virou para a outra criada e concluiu –– Viva! –– Berrou a menina de forma
infantilizada. –– Uhum! … Lembro-me da última vez que meu falecido pai, esteve
aqui em Portugal. Ele levou um livro de receitas portuguesas e obrigou as
mucamas da fazenda a aprender alguns doces, sobremesas e comidas típicas de cá.
–– Qual é o doce que mais apetece o paladar da
menina? –– Indagou a criada de forma festiva. Depois colocou a esponja que
usava para esfregava, as costas da jovem, sobre a saboneteira.
–– Ah, na verdade são muitos… –– iniciou –– Mas o
que eu mais gosto sãos os pastéis de nata, ou de Belém, como são conhecidos
aqui! Gosto muito do toucinho-do-céu, papo de anjo, pudim de clara entre outro.
Não gosto nem de falar, pois já me enche a boca d’água.
–– A senhorita terá que tomar cuidado, pois correrá
o risco de engordar aqui.
–– Credo! –– Helena fez o sinal da cruz –– Deus me
livre, desta sorte!
O papo sobre comida durou mais algumas horas, até,
que a criada se retirou do quarto com a bandeja.
–– Excuse me,
Lady... com licença, senhorita.
–– A criada recolheu a chávena, colocou-a sobre a bandeja e deu dois passos
para trás. –– Se precisar, só chamar. –– Em seguida a serviçal deixou a casa de
banho.
A outra senhora também saiu, deixando-a sozinha.
–– Senhorita... –– Parou a criada e voltando-se para
a menina disse; –– não saía da água. Volto já, já... Fica quieta, aí. Daqui a pouco, retorno para
ajudá-la a sair da água.
Minutos depois, retornou com uma imensa toalha nas
mãos. Helena ergueu-se da tina e enrolou-se na toalha.
–– Pronto! –– A criada prendia a toalha nas costas
da menina –– Agora já pode sair da água, querida.
Helena enrolou-se na enorme toalha e caminhou pelo
quarto. Com autorização a jovem serviçal abriu o baú e pegou a roupa, que a
menina usaria o restante do dia. Depois que ajudou Helena a se vestir, a
serviçal, saiu do aposento, deixando-a novamente sozinha. Ela caminhou por toda
acomodação, ergueu todas as cortinas e abriu algumas janelas. Queria ver a
paisagem que se apresentava a sua frente. Mas, dali, dava para se ver pouca
coisa, alguns grandes casarões, o paço imperial, o forte, passeios públicos e
ao longe, bem ao longe, mesmo, um filete de água do porto. Um quarto de hora
depois, a serviçal, regressou ao aposento, desta vez apenas para anunciar a sua
convocação. A viscondessa a estava convocando em seu gabinete.
–– Senhorita, vossa avó a aguarda em seu gabinete. ––
Iniciou a criada.
–– É mesmo, ela me disse que antes da janta gostaria
de falar comigo. –– Iniciou a menina –– Vossa mercê, não sabe o que ela quer,
sabe? – Perguntou de forma faceira e infantil.
–– Não, não sei de nada senhora. –– Respondeu-lhe de
forma intempestiva –– Ela, a senhora sua avó, enviou-me aqui apenas para te
buscar.
–– Está bem! –– Espero que não seja nada de mais
grave.
Leninha deu alguns passos pelo cômodo. Depois seguiu
ao lado da ama pelo imenso corredor, até que alcançaram o alto da escada. A
criada foi à frente, Helena a seguiu bem de perto, logo atrás dela. As duas já
estavam bem familiarizadas, pois fizeram todo o trajeto conversando. Assim que
as duas conseguiram vencer o último degrau da escada, seguiram por um corredor
estreito até que alcançaram a porta do gabinete. A viscondessa a aguardava; um
serviçal afastou a cadeira e ela se acomodou.
–– Conseguiu descansar, meu anjo? –– Iniciou a velha
de forma alegre –– E as acomodações estão ao seu contento?
–– Pois sim, minha avó! –– A menina olhou para a
figura imponente da velha senhora e disse –– Mas o que realmente me encuca é o
que a senhora quer comigo! –– Meneou um tanto quanto sisuda –– Não me diga que
terei que mandar minha criada embora?
– Não, não se preocupe que não é isso. A sua criada
ficará aqui o tempo que você ficar. – A mulher agora havia mudado o tom de voz.
Falava com voz grave, parecia querer demonstrar mais respeito. – Fique
tranquila que nada acontecerá com a sua criada, na verdade, acho até bom que
ela fique aqui, assim você não se sentirá muito deslocada.
–– Ufa! –– A menina passou a mão sobre o peito –
Acreditei que teria que despachá-la para o Brasil – a menina sorriu – Obrigada,
vovó. A senhora não poderia ter dado presente melhor.
O cenho da senhora se fechou de vez. Ao ver o rosto
da avó, a menina se assustou.
–– Bem… para começar devo-lhe advertir de algumas
coisas – a menina parou de sorrir na mesma hora –– O fato que a trouxe aqui,
não foi sua criada, mas… devo-lhe advertir sobre alguns pontos…
A conversa entre avó e neta durou cerca de uma hora.
Tempo suficiente para a velha viscondessa expor e elucidar, postos-chaves dos
novos hábitos que a menina deveria ter. Valores que regeria a convivência dela,
a menina, com os moradores e membros da alta sociedade lusitana, aprendendo e
respeitando os novos princípios culturais. Diferentemente do que Helena estava
acostumada no Brasil, em Portugal, teria que respeitar e seguir regras e
protocolos de conduta social. Preceitos duríssimos.
Assim que a viscondessa passou as novas diretrizes.
A menina ficou assustadíssima, pois era acostumada a liberdade, a sair para
passear, andar a cavalo, nadar no rio com os negrinhos, subir em árvores,
correr de um lado para o outro. Agora, em Lisboa, teria que sujeitar-se a
regulamentos como se estivesse em um regimento militar. A Sra. não lhe deu
colher-de-chá, foi dura, em sua retórica. Tratou-a como se estivesse em um
quartel ou em alguma colher de chá da Europa. Direcionou seu dia inteiro da
hora que se levantaria, até a hora que se deitaria. Não deixou faltar nada o
que comeria, como falaria a que hora se levantaria da cama; a que hora
estudaria se poderiam receber visitas, se poderia falar com homens, se poderiam
ler romances. Tudo mais, tudo mesmo lhe foi delimitado. Helena agora se sentia
em uma senzala, tendo que obedecer a ordens de seus patrões. Nem mesmo os
escravos de sua fazenda possuíam regras tão rígidas.
Uma hora depois Leninha, deixou o gabinete,
assustadíssima. “Para que tantas regras? ” Pensava. Ela estava com vontade de
pegar suas coisas e voltar para o Brasil, correr para os braços da mãe. Temia
não conseguir acompanhar as regras impostas pela avó. Durante toda viagem
acreditou que teria mais liberdade em Portugal, mas se enganou, passou do
estado de liberdade, para o estado de cativa. Cativa de regras de decoro e
protocolos. A viscondessa sempre dizia: “que para uma menina virar lady,
deveria estudar e se empenhar muito”. Dizia também: “que a tratava daquela
forma para que ela se tornasse uma dama de respeito”. A senhora ainda usava
métodos medievais para educar a menina.
Queria fazer de Anna Helena uma senhorita
respeitável e educada. Fazê-la sobressair às outras senhoritas da Corte
Europeia. Não media esforços para alcançar seus objetivos metodológicos e
educacionais; vigiava como leoa cada passo dado pela menina, durante o dia. A
viscondessa foi pega várias vezes pelas criadas atrás das portas, das salas onde
a tutora francesa tomava as lições de Heleninha. Era quase que comum pegar a
velha senhora posta atrás de alguma porta a espiar as aulas. Na verdade, ela
queria saber se a menina e sua criada estavam tomando as lições, direito.
Quando percebia que a aula não estava caminhando a seu contento, ela mesma
abria as portas e gritava com as meninas, e aos berros dizia:
–– Madame SOPHIE GOBINEAU ESTÁ SENDO PAGA PARA
EDUCAR DUAS DAMAS E NÃO DUAS SELVAGENS. VEJAM SÓ, COMO VOCÊS DEIXAM-NA
EXAURIDA! –– Dizia apontando para a tutora – AGORA CALEM AS VOSSAS BOCAS, E
PRESTEM ATENÇÃO, NO QUE ELA VÓS ESTAIS ENSINADO. BANDO DE MARITACAS DAS TERRAS
ALÉM-MAR. –– Depois do longo sermão, fechava a porta e punha-se de volta ao seu
posto.
Depois que a tutora ia embora, a viscondessa,
toma-lhes a lição em forma de chamada oral; então só depois as liberava para
brincadeiras e refeições. Madame Sophie Goubineau
ia embora sempre após o chá das cinco, hábito que há anos fazia parte da casa.
A viscondessa trouxera da Inglaterra o costume de tomar o chá das cinco. Viveu
por seis anos na Inglaterra, juntamente com seu falecido esposo, avô da menina,
que foi embaixador de Portugal em London. Lá a aristocrata adquiriu costumes da
corte da rainha Victória. Além do hábito do chá das cinco e a pontualidade
inglesa, outras formas inglesas de ser.
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