domingo, 21 de janeiro de 2018

O retorno a Lisboa


Ae neta passaram mais alguns dias, com seus parentes, tempo suficiente para participarem de saraus e festejos. O último lugar em que esteve, em passeio, foi ao Palácio da Pena, ou, Convento de São Jerônimo; lugar lindíssimo, que mais parecia saído dos contos de fadas. Foi também dentro daquelas paredes que Anna Helena fez uma linda e agradável descoberta. Sua avó, a viscondessa, sua tia-avó, a condessa, e suas primas de segundo grau; participaram de uma confraria onde, Helena descobriu que faz parte de um clã de feiticeiras. A viscondessa lhe contou que as mulheres de sua família vinham de uma ascendência direta de Rea Silvia, uma princesa da família real de Alba Longa. Essa princesa havia dado origem à linhagem que ela fazia parte, que era o clã Vestal. Falou tudo sobre a origem de suas antepassadas, das magias que as cercava; das parentas que morreram durante a Santa Inquisição. Da perseguição que sofreram em Roma, e do legado que deveria levar a partir daquele momento. Mas que só sentiria realmente, o poder, que possuía a partir de seus 17 anos, quando seria iniciada em um Sabbat. Helena ficou assustadíssima, mas digeriu tudo que a avó dizia, sem o menor problema. Parecia já esperar por aquele momento, visto que, desde bebê sabia ser diferente das outras meninas. 
–– Mas, quando isso acontecerá, vovó? –– Helena deixou-se cair sobre um banco de pedra.
–– No nascer da última lua, no primeiro dia, de seu décimo sétimo aniversário.
–– Será nesse dia que me tornarei uma bruxa?
–– Não será propriamente uma bruxa, mas uma feiticeira da Vestal. –– A viscondessa havia sentado a seu lado. –– Nesse dia você descobrirá quais são os seus dons, e eles serão potencializados. Creio que você já os tenha percebido, mas não sabe ainda de que forma eles se manifestaram.
–– Pois é, sinto-me diferente. –– A menina Helena já se mostrava mais animada, com a descoberta.
–– A partir desse dia você se tornará uma iniciada, nas magias da lua. –– A viscondessa pegou as mãos da menina e as cariciou – Será no dia de sua iniciação, no Sabbat, que vossemecê receberá um pseudônimo para as reuniões das feiticeiras.
–– Estou feliz em descobrir essas coisas. –– Helena sorriu –– Agora, entendo, por que me sentia diferente, possuía visões e um sentimento diferente pelos outros. –– Você não sabe, mas sua criada Magnólia não foi lhe dada à toa. Ela possui a missão de lhe proteger.
A conversa entre as mulheres da família Albuquerque durou mais algumas horas; a viscondessa esclareceu todas as dúvidas da menina. Helena saiu alegríssima, depois de tudo que ouviu da boca de sua avó. D'Anna não lhe escondeu nada, explicou para Leninha o que mudaria em sua vida após seu décimo sétimo aniversário; quais seriam suas graças divinas. Proferiu até sobre a marca de nascença no punho direito. Helena tinha uma pequena marca de nascimento, em forma de auréola, no punho esquerdo. Helena e a avó passaram mais alguns dias ali. No dia primeiro de maio regressaram para Lisboa; duas semanas após seu retorno a Lisboa a viscondessa, recebeu um convite especial. Ela e a neta haviam sido convidadas para assistir a um conserto no teatro São Carlos. A Grand Ópera francesa iria apresentar a obra, A Megera domada, de William Shakespeare para o Rei-consorte D’ Fernando II.
Na noite do espetáculo o Theatro Real de São Carlos estava cheio de membros da alta sociedade lisboeta. Tanto os salões, quanto os corredores pareciam ter-se tornado passarelas da alta moda europeia, tudo estava grandioso. Os membros da nobreza e da burguesia, não economizaram nos trajes. Damas com suas luminosas, farfalhantes e belíssimas crinolinas, de vários tecidos e das mais variadas cores e modelos. Naquela noite, algo era regra: a disputa entre às senhoras, sobre qual crinolina era maior, era uma mais rodada que a outra. Sem falar nas tiaras, ornatos de cabelo, capas de veludo, joias, que pareciam brigar entre si. Barões com suas digníssimas esposas, baronesas que usavam tiaras, condessas e viscondessas exibiam joias deslumbrantes. Os jovens desfilavam seu júbilo, espalhando alegria pelos salões; e os anciões traziam junto à memória, suas experiências de um passado folgazã e risonho. Como àqueles jovens, que agora vivem vidas com frenesi, como se não houvesse amanhã.
Helena usava um lindo vestido de musseline verde-esmeralda, com aplicações em renda chantilly na orla, já no decote sianinhas; no cós uma fita de cetim larga, na cor maça verde, marcava bem a cintura. A saia-balão amplíssima. Cabelos presos em uma redinha e uma grossa trança; presa no alto da cabeça, como se fosse uma coroa cravejada com joias em formato de estrelas e rosas. Já a viscondessa usava um vestido discreto e sóbrio, sendo viúva deveria trazer a marca de sua viuvez.
Os funcionários, do teatro, espalharam entre os nobres o início do espetáculo; tão logo que houve o anúncio, os espectadores seguiram para seus lugares. Primeiro: entraram os que ficariam junto ao palco, depois, nobres e burgueses seguiram para seus camarotes de luxo. Antes mesmo que os primeiros atores entrassem em cena, houve um período de silêncio. As trombetas soaram e a rainha Maria II, e seu esposo, o rei consorte D’ Fernando II, ingressaram e se acomodaram no camarote central. Assim que os Soberanos se acomodaram, um novo silêncio tomou conta do teatro; um sinal sonoro foi ouvido, a cortina de veludo vermelho, com franja dourada, foi aberta. Eis que das profundezas do santo tablado surgiram atores, que deram início ao espetáculo.
Helena e a avó estavam acomodadas, no camarote, ao lado da família real portuguesa. D’Anna não havia percebido, no entanto, Helena estava sendo cortejada por um guapo mocetão. Era um rapaz moreno, alto, forte, de belas feições e herdeiro de uma família rica e tradicional portuguesa. Não era a primeira vez que os dois se viam, já tinham tido a oportunidade de trocarem olhares, algumas vezes. Desde o primeiro encontro os dois sentiram algo diferente; sempre que trocavam olhares, sentiam o coração saltar, as mãos tremiam, os olhos se enchiam de lágrimas e o peito palpitava. Depois da primeira troca de olhares, o rapaz, estava decidido que falaria com a viscondessa, sobre um arranjo de casamento. Toda tarde, após o almoço, perto das três horas, ele, passava, em seu alazão, diante dos portões de ferro do solar da viscondessa.
Ao final do primeiro ato a alta sociedade regressou aos salões nobres. E entre uma taça de champanhe, um copo de gin ou de Vinho do Porto, esperaram o início do segundo ato que não tardou. Helena e o rapaz continuaram trocando olhares no segundo ato, no terceiro e no quarto, até que a obra chegou ao fim. Diante de aplausos calorosos, de pé, o espetáculo acabou. E sobre gritos de: BRAVO! BRAVÍSSIMO, BRAVO! Os espectadores foram deixando seus lugares e seguindo para as saídas. As cortinas se fecharam, os intérpretes da ópera começaram a deixar o palco. O público, aos poucos, seguia para os corredores, salões, anfiteatros e escadarias. Encaminhavam-se para as saídas. A escadaria principal estava cheia de senhores, senhoras, senhoritas, mocetões, pajens e damas de companhia, todos aguardavam suas carruagens.
 O coche, com o brasão da família Albuquerque, deteve-se ao limiar da escadaria principal. O lacaio desceu da boleia, abriu a portinhola, auxiliou a viscondessa e ajudou Helena. As duas acomodaram-se sobre almofadas de veludo carmim, então a portinhola foi fechada. Assim que tomaram assento, o cocheiro atiçou os cavalos com o rebenque, logo saíram aos trotes pela avenida principal de Lisboa. Logo o coche que elas estavam fez a volta no Passeio Público. Foi naquele exato momento que uma chuva torrencial desabou sobre toda Lisboa, causando grande confusão nas ruas.
–– E agora, vovó, o que faremos? –– Murmurou Leninha. –– Ah... ainda bem que a chuva aguardou a nossa entrada no coche?! Ou agora estaríamos ensopadas. Ah... ah... ah! ...
–– É mesmo, minha filha?! –– Respondeu à velha.
O coche, que as carregava para casa, demorou um pouco mais que o normal para percorrer o caminho, que habitualmente em dias normais, demoraria pouco mais de meia hora. Levou cerca de uma hora para percorrer a velha e a nova Lisboa, a mansão da viscondessa ficava a meia hora da capital portuguesa. Tempo que avó e neta usaram da melhor forma, usou para jogar conversa fora falar sobre coisas amenas, contar histórias velhas; idealizar sonhos para o futuro. A viscondessa aproveitou também para elucidar, a neta, sobre o Dom Divino, que a menina havia recebido da deusa Geia. A menina se mostrou animada, assustada às vezes, mas muito feliz por ter descoberto que era uma espécie de feiticeira. Não uma feiticeira como as dos contos de fadas; histórias que ouvira desde nova da boca da mãe e da professora. Seu dom vinha do sangue, sangue de mulheres guerreiras e fortes, Helena estava estupefata com tantas descobertas. 
–– Gostei muito de descobrir que sou uma feiticeira. –– Helena que estava ao lado da avó, ergueu um dos braços e de um salto só a abraçou. –– A senhora bem sabe que a amo muito. Amo-a ainda mais depois de descobrir essa faceta das mulheres de nossa família.
A viscondessa sorriu e abraçou a neta. Foi um abraço apertado, afetuoso e duradouro. Os olhos da velha senhora se encheram de lágrimas e suas últimas palavras, antes, do cessar da marcha dos cavalos, foram:
–– Faça bom uso desses dom. –– A viscondessa pegou as mãos da neta e sobrepôs as suas. Depois voltou a encará-la e concluiu –– usem no auxílio de suas irmãs, amigos e pessoas queridas. –– D’Anna que se mantivera impassível, até então, agora demonstrava grande afeto. –– Esse dom divino, entregue a nós pela mãe terra, deve ser usado sempre para o bem. Jamais deve usá-lo para obter favores para si, ou de forma a obter lucro, ou com leviandade. Pense apenas nos seus coirmãos. São poucas as pessoas que possuem a graça de ter esse dom, mas as mulheres da nossa família foram agraciadas.
–– Pode deixar amada vovó. Jamais farei algo que venha interferir neste dom. Usarei sempre para o bem dos outros... E muito obrigada por ter contando-me.
–– Este Dom, das mulheres de nossa família, vem desde a Grécia antiga; ainda quando os deuses do Olimpo desciam em Atenas, para mostrar aos atenienses os seus poderes.
–– E quem é a deusa ou o deus criador desses dons? –– Helena mostrou-se interessada.
–– Cada mulher, de nossa linhagem, recebeu um dom e cada dom vem de um deus diferente. –– A viscondessa novamente pegou as mãos da neta. –– Mas o seu especificamente vem da deusa Vênus, a deusa do amor e da beleza.
Oh... oh... oh! Disse o cocheiro para que os cavalos parassem diante da casa.
O coche parou diante da escadaria principal, o lacaio desceu da boleia, abriu a portinhola. No alto da escadaria a porta foi aberta e do átrio da casa surgiu uma criada com um guarda-chuva. A criada desceu as escadas e parou diante da portinhola, primeiro desceu a viscondessa, a criada a conduziu escada acima e a deixou debaixo do alpendre; depois voltou e buscou Helena, que a aguardava junto à porta. Assim que as duas foram introduzidas na casa à criada pediu licença e se retirou. Paradas ainda no hall de entrada avó e neta sacudiram as volumosas saias, havia-se molhado um pouco. As duas não queriam molhar o carpete da escadaria interior.
–– Que chuva! –– Afirmou uma das criadas, que as auxiliava na retirada das capas. –– Graças ao bom Deus –– a criada juntou as mãos em forma de prece ––, que as senhoras conseguiram regressar em segurança. –– A criada ficou novamente em silêncio, e como se quisesse puxar algo na memória, disse. –– O céu bem que mostrava. O vermelhão no céu, ontem, mostrava que hoje teríamos chuva.
–– É mesmo! –– Respondeu à velha. –– Peça para Marselha preparar-nos um banho, não podemos dormir assim; ou pegaremos uma pneumonia. Deus livre-nos de ficarmos tísicas. –– A viscondessa olhou para o teto, como se olhasse para o céu, e fez o sinal da cruz.
 Depois que retiraram as pesadas capas de veludo molhado das costas, viscondessa e neta, foram conduzidas para seus toucadores. Banharam-se, vestiram-se e após uma pequena ceia foram conduzidas, por suas criadas pessoais, a seus leitos.
A paixonite de Helena e do rapaz não pode durar muito, pois logo avó e neta tiveram que partir para Portugal novamente.

***

Uma bela e deleitosa harmonia foi se formando, com o passar do tempo, entre avó e neta. Não foi à toa que a viscondessa, avó da menina, não mediu esforços, muito menos a quantia de dinheiro que seria gasto para fazer um sarau de apresentação. Helena estava, preste a completar quinze primaveras, estava se tornando uma mulher; e como tal, deveria ser apresentada a alta sociedade europeia.
Por amar a neta resolveu fazer um sarau digno dos palácios londrinos. Onde participaram de bailes de apresentação das jovens aristocratas inglesas. Não poupou dinheiro para atender todas as exigências do protocolo para bailes da nobreza inglesa. Mandaram vir de Paris vestidos novos, para a neta, vestidos das melhores casas de moda de toda França, sapatos novos, perfumaria, coisas de butiques de luxo. Foram, na verdade, três dias de festança regada com muita comida, bebidas das melhores adegas da Europa; pratos típicos da França, Itália, Alemanha, Noruega, Normandia, Portugal, Suécia e Espanha.
Helena no dia da festa estava bem ataviada. Optou por usar um vestido de veludo alemão, com aplicações em organza e renda francesa, na cor azul Royal; no pescoço uma gargantilha de diamante rosa e esmeraldas; na orelha, um par de brincos de diamante. A mão e os braços enluvados em uma luva de cetim branco, no punho um bracelete conjugado a gargantilha.
A viscondessa lembrou-se da noite que foi apresentada a alta sociedade londrina. Foi daquela mesma forma que estava sendo para a neta. O baile de debutante era o dia mais esperado para qualquer senhorita de abastada família; era o ponto alto de uma existência próspera e aprazível. Um sarau bem-sucedido poderia render, até, casamentos. Quantas não foram às meninas que saíram de seus bailes de apresentação, com casamento marcado. Os bailes de apresentação, na verdade, não passavam de vitrinas, onde moças eram praticamente leiloadas por suas famílias. Vivia-se em uma época, onde o que menos importava era o amor. Casava-se apenas por conveniência, para aquisição de bens, ou para manter bens em família. Onde jovens moças, que mal haviam saído dos cueiros, eram entregues a velhos. Era raro, praticamente impossível ver um casamento baseado exclusivamente no amor.
Casamentos por amor era visto apenas em casamentos de pobres e pessoas com menor poder econômico. Casamento, por amor, era coisa para pobres! Além de serem vistos, pelas senhoritas nobres e burguesas, apenas em romances que liam.

Helena sempre se mostrara contraria a todos os dogmas impostos pela sociedade, igreja. E assim como boa parte das moças de sua idade, sonhava: com o dia em que o príncipe encanto bateria em sua porta e a levaria no lombo de seu cavalo. Sonhadora, porém, determinada e de um gênio inconfundível. Uma mulher com ideias e atitudes além de seu tempo.

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