O retorno
a Lisboa
Avó
e neta passaram mais alguns dias,
com seus parentes, tempo suficiente para participarem de saraus e festejos. O
último lugar em que esteve, em passeio, foi ao Palácio da Pena, ou, Convento de
São Jerônimo; lugar lindíssimo, que mais parecia saído dos contos de fadas. Foi
também dentro daquelas paredes que Anna Helena fez uma linda e agradável
descoberta. Sua avó, a viscondessa, sua tia-avó, a condessa, e suas primas de
segundo grau; participaram de uma confraria onde, Helena descobriu que faz
parte de um clã de feiticeiras. A viscondessa lhe contou que as mulheres de sua
família vinham de uma ascendência direta de Rea Silvia, uma princesa da família
real de Alba Longa. Essa princesa havia dado origem à linhagem que ela fazia
parte, que era o clã Vestal. Falou tudo sobre a origem de suas antepassadas,
das magias que as cercava; das parentas que morreram durante a Santa
Inquisição. Da perseguição que sofreram em Roma, e do legado que deveria levar
a partir daquele momento. Mas que só sentiria realmente, o poder, que possuía a
partir de seus 17 anos, quando seria iniciada em um Sabbat. Helena ficou
assustadíssima, mas digeriu tudo que a avó dizia, sem o menor problema. Parecia
já esperar por aquele momento, visto que, desde bebê sabia ser diferente das
outras meninas.
–– Mas, quando isso acontecerá, vovó? –– Helena
deixou-se cair sobre um banco de pedra.
–– No nascer da última lua, no primeiro dia, de seu
décimo sétimo aniversário.
–– Será nesse dia que me tornarei uma bruxa?
–– Não será propriamente uma bruxa, mas uma
feiticeira da Vestal. –– A viscondessa havia sentado a seu lado. –– Nesse dia
você descobrirá quais são os seus dons, e eles serão potencializados. Creio que
você já os tenha percebido, mas não sabe ainda de que forma eles se
manifestaram.
–– Pois é, sinto-me diferente. –– A menina Helena já
se mostrava mais animada, com a descoberta.
–– A partir desse dia você se tornará uma iniciada,
nas magias da lua. –– A viscondessa pegou as mãos da menina e as cariciou –
Será no dia de sua iniciação, no Sabbat, que vossemecê receberá um pseudônimo
para as reuniões das feiticeiras.
–– Estou feliz em descobrir essas coisas. –– Helena
sorriu –– Agora, entendo, por que me sentia diferente, possuía visões e um
sentimento diferente pelos outros. –– Você não sabe, mas sua criada Magnólia
não foi lhe dada à toa. Ela possui a missão de lhe proteger.
A conversa entre as mulheres da família Albuquerque
durou mais algumas horas; a viscondessa esclareceu todas as dúvidas da menina.
Helena saiu alegríssima, depois de tudo que ouviu da boca de sua avó. D'Anna
não lhe escondeu nada, explicou para Leninha o que mudaria em sua vida após seu
décimo sétimo aniversário; quais seriam suas graças divinas. Proferiu até sobre
a marca de nascença no punho direito. Helena tinha uma pequena marca de
nascimento, em forma de auréola, no punho esquerdo. Helena e a avó passaram
mais alguns dias ali. No dia primeiro de maio regressaram para Lisboa; duas
semanas após seu retorno a Lisboa a viscondessa, recebeu um convite especial.
Ela e a neta haviam sido convidadas para assistir a um conserto no teatro São
Carlos. A Grand Ópera francesa iria apresentar a obra, A Megera domada, de
William Shakespeare para o Rei-consorte D’ Fernando II.
Na noite do espetáculo o Theatro Real de São Carlos
estava cheio de membros da alta sociedade lisboeta. Tanto os salões, quanto os
corredores pareciam ter-se tornado passarelas da alta moda europeia, tudo
estava grandioso. Os membros da nobreza e da burguesia, não economizaram nos
trajes. Damas com suas luminosas, farfalhantes e belíssimas crinolinas, de
vários tecidos e das mais variadas cores e modelos. Naquela noite, algo era
regra: a disputa entre às senhoras, sobre qual crinolina era maior, era uma
mais rodada que a outra. Sem falar nas tiaras, ornatos de cabelo, capas de
veludo, joias, que pareciam brigar entre si. Barões com suas digníssimas
esposas, baronesas que usavam tiaras, condessas e viscondessas exibiam joias
deslumbrantes. Os jovens desfilavam seu júbilo, espalhando alegria pelos
salões; e os anciões traziam junto à memória, suas experiências de um passado
folgazã e risonho. Como àqueles jovens, que agora vivem vidas com frenesi, como
se não houvesse amanhã.
Helena usava um lindo vestido de musseline
verde-esmeralda, com aplicações em renda chantilly na orla, já no decote sianinhas;
no cós uma fita de cetim larga, na cor maça verde, marcava bem a cintura. A
saia-balão amplíssima. Cabelos presos em uma redinha e uma grossa trança; presa
no alto da cabeça, como se fosse uma coroa cravejada com joias em formato de
estrelas e rosas. Já a viscondessa usava um vestido discreto e sóbrio, sendo
viúva deveria trazer a marca de sua viuvez.
Os funcionários, do teatro, espalharam entre os
nobres o início do espetáculo; tão logo que houve o anúncio, os espectadores
seguiram para seus lugares. Primeiro: entraram os que ficariam junto ao palco,
depois, nobres e burgueses seguiram para seus camarotes de luxo. Antes mesmo
que os primeiros atores entrassem em cena, houve um período de silêncio. As
trombetas soaram e a rainha Maria II, e seu esposo, o rei consorte D’ Fernando
II, ingressaram e se acomodaram no camarote central. Assim que os Soberanos se
acomodaram, um novo silêncio tomou conta do teatro; um sinal sonoro foi ouvido,
a cortina de veludo vermelho, com franja dourada, foi aberta. Eis que das
profundezas do santo tablado surgiram atores, que deram início ao espetáculo.
Helena e a avó estavam acomodadas, no camarote, ao
lado da família real portuguesa. D’Anna não havia percebido, no entanto, Helena
estava sendo cortejada por um guapo mocetão. Era um rapaz moreno, alto, forte,
de belas feições e herdeiro de uma família rica e tradicional portuguesa. Não
era a primeira vez que os dois se viam, já tinham tido a oportunidade de
trocarem olhares, algumas vezes. Desde o primeiro encontro os dois sentiram
algo diferente; sempre que trocavam olhares, sentiam o coração saltar, as mãos
tremiam, os olhos se enchiam de lágrimas e o peito palpitava. Depois da
primeira troca de olhares, o rapaz, estava decidido que falaria com a
viscondessa, sobre um arranjo de casamento. Toda tarde, após o almoço, perto
das três horas, ele, passava, em seu alazão, diante dos portões de ferro do
solar da viscondessa.
Ao final do primeiro ato a alta sociedade regressou
aos salões nobres. E entre uma taça de champanhe, um copo de gin ou de Vinho do
Porto, esperaram o início do segundo ato que não tardou. Helena e o rapaz
continuaram trocando olhares no segundo ato, no terceiro e no quarto, até que a
obra chegou ao fim. Diante de aplausos calorosos, de pé, o espetáculo acabou. E
sobre gritos de: BRAVO! BRAVÍSSIMO, BRAVO! Os espectadores foram deixando seus
lugares e seguindo para as saídas. As cortinas se fecharam, os intérpretes da
ópera começaram a deixar o palco. O público, aos poucos, seguia para os
corredores, salões, anfiteatros e escadarias. Encaminhavam-se para as saídas. A
escadaria principal estava cheia de senhores, senhoras, senhoritas, mocetões,
pajens e damas de companhia, todos aguardavam suas carruagens.
O coche, com
o brasão da família Albuquerque, deteve-se ao limiar da escadaria principal. O
lacaio desceu da boleia, abriu a portinhola, auxiliou a viscondessa e ajudou
Helena. As duas acomodaram-se sobre almofadas de veludo carmim, então a
portinhola foi fechada. Assim que tomaram assento, o cocheiro atiçou os cavalos
com o rebenque, logo saíram aos trotes pela avenida principal de Lisboa. Logo o
coche que elas estavam fez a volta no Passeio Público. Foi naquele exato
momento que uma chuva torrencial desabou sobre toda Lisboa, causando grande
confusão nas ruas.
–– E agora, vovó, o que faremos? –– Murmurou
Leninha. –– Ah... ainda bem que a chuva aguardou a nossa entrada no coche?! Ou
agora estaríamos ensopadas. Ah... ah... ah! ...
–– É mesmo, minha filha?! –– Respondeu à velha.
O coche, que as carregava para casa, demorou um
pouco mais que o normal para percorrer o caminho, que habitualmente em dias
normais, demoraria pouco mais de meia hora. Levou cerca de uma hora para
percorrer a velha e a nova Lisboa, a mansão da viscondessa ficava a meia hora
da capital portuguesa. Tempo que avó e neta usaram da melhor forma, usou para
jogar conversa fora falar sobre coisas amenas, contar histórias velhas;
idealizar sonhos para o futuro. A viscondessa aproveitou também para elucidar,
a neta, sobre o Dom Divino, que a menina havia recebido da deusa Geia. A menina
se mostrou animada, assustada às vezes, mas muito feliz por ter descoberto que
era uma espécie de feiticeira. Não uma feiticeira como as dos contos de fadas;
histórias que ouvira desde nova da boca da mãe e da professora. Seu dom vinha
do sangue, sangue de mulheres guerreiras e fortes, Helena estava estupefata com
tantas descobertas.
–– Gostei muito de descobrir que sou uma feiticeira.
–– Helena que estava ao lado da avó, ergueu um dos braços e de um salto só a
abraçou. –– A senhora bem sabe que a amo muito. Amo-a ainda mais depois de
descobrir essa faceta das mulheres de nossa família.
A viscondessa sorriu e abraçou a neta. Foi um abraço
apertado, afetuoso e duradouro. Os olhos da velha senhora se encheram de
lágrimas e suas últimas palavras, antes, do cessar da marcha dos cavalos,
foram:
–– Faça bom uso desses dom. –– A viscondessa pegou
as mãos da neta e sobrepôs as suas. Depois voltou a encará-la e concluiu –– usem
no auxílio de suas irmãs, amigos e pessoas queridas. –– D’Anna que se mantivera
impassível, até então, agora demonstrava grande afeto. –– Esse dom divino,
entregue a nós pela mãe terra, deve ser usado sempre para o bem. Jamais deve
usá-lo para obter favores para si, ou de forma a obter lucro, ou com
leviandade. Pense apenas nos seus coirmãos. São poucas as pessoas que possuem a
graça de ter esse dom, mas as mulheres da nossa família foram agraciadas.
–– Pode deixar amada vovó. Jamais farei algo que venha
interferir neste dom. Usarei sempre para o bem dos outros... E muito obrigada
por ter contando-me.
–– Este Dom,
das mulheres de nossa família, vem desde a Grécia antiga; ainda quando os
deuses do Olimpo desciam em Atenas, para mostrar aos atenienses os seus poderes.
–– E quem é a deusa ou o deus criador desses dons? ––
Helena mostrou-se interessada.
–– Cada mulher, de nossa linhagem, recebeu um dom e
cada dom vem de um deus diferente. –– A viscondessa novamente pegou as mãos da
neta. –– Mas o seu especificamente vem da deusa Vênus, a deusa do amor e da
beleza.
Oh... oh... oh! Disse o cocheiro para que os cavalos
parassem diante da casa.
O coche parou diante da escadaria principal, o
lacaio desceu da boleia, abriu a portinhola. No alto da escadaria a porta foi
aberta e do átrio da casa surgiu uma criada com um guarda-chuva. A criada
desceu as escadas e parou diante da portinhola, primeiro desceu a viscondessa,
a criada a conduziu escada acima e a deixou debaixo do alpendre; depois voltou
e buscou Helena, que a aguardava junto à porta. Assim que as duas foram
introduzidas na casa à criada pediu licença e se retirou. Paradas ainda no hall
de entrada avó e neta sacudiram as volumosas saias, havia-se molhado um pouco.
As duas não queriam molhar o carpete da escadaria interior.
–– Que chuva! –– Afirmou uma das criadas, que as
auxiliava na retirada das capas. –– Graças ao bom Deus –– a criada juntou as
mãos em forma de prece ––, que as senhoras conseguiram regressar em segurança.
–– A criada ficou novamente em silêncio, e como se quisesse puxar algo na
memória, disse. –– O céu bem que mostrava. O vermelhão no céu, ontem, mostrava
que hoje teríamos chuva.
–– É mesmo! –– Respondeu à velha. –– Peça para
Marselha preparar-nos um banho, não podemos dormir assim; ou pegaremos uma
pneumonia. Deus livre-nos de ficarmos tísicas. –– A viscondessa olhou para o
teto, como se olhasse para o céu, e fez o sinal da cruz.
Depois que
retiraram as pesadas capas de veludo molhado das costas, viscondessa e neta,
foram conduzidas para seus toucadores. Banharam-se, vestiram-se e após uma
pequena ceia foram conduzidas, por suas criadas pessoais, a seus leitos.
A paixonite de Helena e do rapaz não pode durar
muito, pois logo avó e neta tiveram que partir para Portugal novamente.
***
Uma bela e deleitosa harmonia foi se formando, com o
passar do tempo, entre avó e neta. Não foi à toa que a viscondessa, avó da
menina, não mediu esforços, muito menos a quantia de dinheiro que seria gasto
para fazer um sarau de apresentação. Helena estava, preste a completar quinze
primaveras, estava se tornando uma mulher; e como tal, deveria ser apresentada
a alta sociedade europeia.
Por amar a neta resolveu fazer um sarau digno dos
palácios londrinos. Onde participaram de bailes de apresentação das jovens
aristocratas inglesas. Não poupou dinheiro para atender todas as exigências do
protocolo para bailes da nobreza inglesa. Mandaram vir de Paris vestidos novos,
para a neta, vestidos das melhores casas de moda de toda França, sapatos novos,
perfumaria, coisas de butiques de luxo. Foram, na verdade, três dias de
festança regada com muita comida, bebidas das melhores adegas da Europa; pratos
típicos da França, Itália, Alemanha, Noruega, Normandia, Portugal, Suécia e
Espanha.
Helena no dia da festa estava bem ataviada. Optou
por usar um vestido de veludo alemão, com aplicações em organza e renda
francesa, na cor azul Royal; no pescoço uma gargantilha de diamante rosa e
esmeraldas; na orelha, um par de brincos de diamante. A mão e os braços enluvados
em uma luva de cetim branco, no punho um bracelete conjugado a gargantilha.
A viscondessa lembrou-se da noite que foi
apresentada a alta sociedade londrina. Foi daquela mesma forma que estava sendo
para a neta. O baile de debutante era o dia mais esperado para qualquer
senhorita de abastada família; era o ponto alto de uma existência próspera e
aprazível. Um sarau bem-sucedido poderia render, até, casamentos. Quantas não
foram às meninas que saíram de seus bailes de apresentação, com casamento
marcado. Os bailes de apresentação, na verdade, não passavam de vitrinas, onde
moças eram praticamente leiloadas por suas famílias. Vivia-se em uma época,
onde o que menos importava era o amor. Casava-se apenas por conveniência, para
aquisição de bens, ou para manter bens em família. Onde jovens moças, que mal
haviam saído dos cueiros, eram entregues a velhos. Era raro, praticamente
impossível ver um casamento baseado exclusivamente no amor.
Casamentos por amor era visto apenas em casamentos
de pobres e pessoas com menor poder econômico. Casamento, por amor, era coisa
para pobres! Além de serem vistos, pelas senhoritas nobres e burguesas, apenas
em romances que liam.
Helena sempre se mostrara contraria a todos os
dogmas impostos pela sociedade, igreja. E assim como boa parte das moças de sua
idade, sonhava: com o dia em que o príncipe encanto bateria em sua porta e a
levaria no lombo de seu cavalo. Sonhadora, porém, determinada e de um gênio
inconfundível. Uma mulher com ideias e atitudes além de seu tempo.
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